Feminism for the 99% – A manifesto*, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser. London: Verso, 2019, 96 p.
Os feminismos não são todos iguais. Esta é a principal lição que a leitura deste pequeno livro, que começa por ser um exercício de separação de águas, nos deixa. Muito dos ecos feministas que ganharam visibilidade nos últimos anos representam o “feminismo liberal”, cujo arquétipo as autoras identificam com Sheryl Sandberg, diretora operacional do Facebook e autora da bíblia femocrata Lean in: women, work and the will to lead. O feminismo liberal ou progressista, argumentam, assenta na falácia meritocrática e personifica a desconexão que existe entre a elite feminista que ascendeu a cargos de poder e a esmagadora maioria das mulheres norte-americanas, cujas vidas não só não melhoraram como sofreram as agruras adicionais da austeridade e consequente perda de emprego ou degradação das condições laborais. De facto, durante largas décadas (e ainda hoje) o feminismo progressista libertou as mulheres brancas do trabalho doméstico, mas, ao mesmo tempo, condenou gerações de mulheres negras e latinas a esse trabalho que as primeiras deixaram para trás, a troco de exíguos salários e precariedade. O lean in de Sandberg representa, em rigor, um lean on nessas mulheres mais pobres, mantendo-se deste modo o típico modus operandi capitalista, caracterizado pela dominação da maioria necessitada por uma elite minoritária e poderosa. Até aqui nada de novo a não ser a tal clarificação conceptual – cuja utilidade e importância seriam, já de si, razões mais que suficientes para devorar este livro na primeira oportunidade.
Feita esta depuração inicial, o livro desenvolve-se em várias teses que incorporam um verdadeiro manifesto feminista, advogando um feminismo emancipatório e maioritário que tem por fim último a libertação dos 99% subjugados, pelo capitalismo, ao 1% extrativo e opressor. Todos os 99% são os reais destinatários deste apelo, e não apenas as mulheres. Arruza, Battacharya e Fraser, três proeminentes vozes da Teoria Crítica, empenham o seu esforço argumentativo para demonstrar que não é possível lutar contra a opressão das mulheres sem abraçar as restantes reivindicações contra-hegemónicas – os movimentos sindicais e de defesa dos direitos dos trabalhadores, o movimento ecologista em tempos de emergência climática, a luta por uma educação gratuita e de qualidade, por habitação decente a custos controlados, pelo acesso a cuidados de saúde universais e gratuitos e, por fim, por um mundo livre de racismos, discriminações e conflitos armados.
Como certamente já terá percebido, a inspiração para este manifesto é dada por Marx e Engels, que em 1848 escreveram o Manifesto Comunista, e em cujos ombros as autoras se apoiam. Com este manifesto propõem-se superar os dois principais desafios que impendem sobre o feminismo e a esquerda: garantir, quanto ao primeiro, que a articulação de um ideário feminista visa a real emancipação da maioria das mulheres, e não de pequenos grupos já de si privilegiados, que partem os glass ceilings deixando para os mais pobres a tarefa de limpar os cacos. Quanto ao segundo, alcançar a articulação entre a luta anticapitalista, particularmente contra o neoliberalismo, e a eclosão dos identitarismos, ultrapassando assim a tensão que representa a maior dificuldade da esquerda neste século XXI.
Feminism for the 99% apresenta-se como um incontornável apelo a quem acredita que um mundo melhor e mais justo é possível. O feminismo emancipatório tem um cunho eminentemente transformador: ao reclamar o desmantelamento do patriarcado pede nada menos do que uma revolução cultural, social, económica e política. Porque não ousar lutar pela revolução para todas e para todos?
* com tradução portuguesa, Feminismo para os 99% – Um manifesto. Ed. Objectiva.
Teresa Violante, Investigadora Universitária