Sol, o mar ali à frente, paredes envidraçadas que não escondem a vista nem tiram a luz. É assim o restaurante do campus da Nova Business School em Carcavelos, onde almocei com Teresa Violante. O local mais adequado. Afinal Teresa Violante é a Diretora das Conferências do Estoril – o maior evento de debate e discussão de ideias em Portugal e que traz mais personalidades de prestígio e mediatismo internacional. Na última edição, em 2017, passaram por lá Edward Snowden, uma yazidi que havia sido escrava sexual do DAESH, Sergio Moro, Baltazar Garçón, Nigel Farage, e, para terminar em esplêndido, Madeline Allbright. A edição das Estoril Conferences deste ano, em fins de maio, já com assinatura total de Teresa Violante, será neste novo campus da Nova. E é lá que tem o escritório com a sua equipa.
Arquitetura moderna, arejada, aproveitando a luz, com edifícios com nomes das empresas que os pagaram (num ótimo exemplo de mecenato educativo pouco habitual por cá), uma banda de alunos a tocar num palco num pátio. Um ambiente cosmopolita e aberto, apropriado para Teresa Violante, curiosa, inquieta, interpelada pelo mundo, insistente em não estar confinada em ortodoxias de pensamento que lhe limitem o sentido crítico e a liberdade.
Teresa Violante vê-se como uma teórica, uma pensadora, uma produtora de conteúdos intelectuais para discussão pública e política – não que o diga, mas repara-se. O que não lhe faz justiça nem ao seu lado prático, refira-se. É por isso que, sobre as Conferências do Estoril, constata, ‘descobri um lado de mim empreendedor, que envolve montar um projeto e estruturá-lo’.
Mas nem só de Conferências do Estoril vive Teresa Violante. Auto declaradamente apaixonada pelos Direitos Humanos – ‘são a minha grande paixão’, diz às tantas -, curso de direito em Coimbra com Erasmus no meio, mestrado em Itália em Direitos Humanos, trabalhou em direito da concorrência para logo regressar à sua vocação para os direitos humanos e fundamentais: foi durante dez anos assessora jurídica do Tribunal Constitucional, até 2017. Desde então é, além de Diretora das Conferências do Estoril, investigadora da Universidade de Frankfurt e do Instituto Max Planckt de Direito Público Comparado.
Lá, investiga na área de Conflitos de Solidariedade Transnacional. Peço exemplos. Teresa Violante refere a posição da Alemanha face aos países devedores do sul da Europa, e salienta a diferença da postura daquele país ‘na crise económica e financeira, em termos de solidariedade, daquela que assumiu perante a crise dos refugiados’. É um tema que lhe é caro: afunilando a área de trabalho, Teresa Violante faz investigação sobre o papel dos tribunais constitucionais dos países resgatados durante a crise financeira pós 2008.
Viaja para a Alemanha uma semana por mês, em trabalho, de domingo depois de deitar as suas crianças, a quinta à noite. O que é possível porque o marido assegura a vida quotidiana dos dois filhos, com seis e oito anos. ‘Ás vezes na Alemanha perguntam-me “what about your children?” e eu respondo “eles têm um pai”‘, diz Teresa. À sexta de manhã, regressada, já está a levá-los à escola. Entretanto, trabalhos de casa, natação, etc. é o pai que assegura. Estas situações são sempre exigentes, reconhece, para as crianças e para os pais, mas gerem-se, e nas semanas em que está compensa a semana que não esteve.
No Tribunal Constitucional, pelo contrário, conta que tinha grande flexibilidade: o volume de trabalho era imenso mas podia ir para casa trabalhar. (Parabéns, Tribunal Constitucional, ganharam uma admiradora.) ‘E a flexibilidade não tem preço’. Pois não.
Regressemos ao constitucionalismo. Afinal, como Teresa Violante afirma, ‘se tiver de definir a minha ideologia, é o constitucionalismo’. Porquê? ‘Todo o poder que existe tem de ser limitado. Poder limitado por princípios, ideias ligadas à dignidade da pessoa humana, que vão de princípios tão liberais como o direito à liberdade e à propriedade privada até ao direito à habitação.’ E não basta, atualmente, limitar o poder do estado. ‘Embora seja um potencial agressor, o grande agressor não é o estado. Os grandes agressores atualmente são entidades privadas, transnacionais, grandes empresas, os mercados que nem personalidade jurídica têm’. Elogia o modelo de constituições escritas e refere que ‘o problema do Reino Unido é não ter uma constituição escrita, é não ter um poder judicial com capacidade de por travões ao legislador e ao executivo.’
Para Teresa Violante, uma essencial característica do constitucionalismo ‘em países que têm tribunais constitucionais ou tribunais que funcionem como constitucionais, é poderem invalidar direitos das maiorias. Podíamos ter uma legislação que obrigasse as mulheres a usarem burqa, e era a maioria parlamentar. O que é que nos impede de fazer isso? Nós termos um sistema judicial e uma constituição que impõe limites às maiorias.’
Da nossa constituição, Teresa Violante considera que ‘o nosso catálogo em termos de direitos é absolutamente maravilhoso’. Acredita no estado e ‘mesmo num estado forte’, porque há casos em que o mercado falha. ‘Sou o mais possível favorável à economia de marcado liberal. Globalmente tirámos da miséria milhões e milhões de seres humanos. Da perspetiva dos Direitos Humanos ninguém pode ficar indiferente a isto. Mas depois olhamos para as democracias liberais e vemos que as vantagens económicas serviram para beneficiar os 1%’.

Por falar em democracias liberais: estão sob cerco. Na Youth Summit/Encontro Nacional de Juventude 2018, ouvi num painel Teresa Violante afirmar que têm de haver esforços para defender as democracias. Porém, reconhece: ‘há aquela tendência de dizer que notícias falsas sempre existiram, e até dão alguns exemplos caricatos da história de Portugal. Mas não é disso que falamos quando falamos de fake news. Há, desde logo, o problema conceptual de o que entendemos por fake news ou, dando um passo atrás, àquilo que Macron chamou de “ataque às democracias”‘. Concretiza. ‘A atuação promovida por alguns estados, ou pelas oligarquias de alguns estados, o caso russo é provavelmente o que temos mais evidência, já mais do que suspeitas – o Brexit, a eleição de Trump, há decisões judiciais. Mas há outros casos, por exemplo aqueles miúdos macedónios, que bombardearam o facebook com notícias falsas aquando da eleição do Trump, até houve um documentário da CNN sobre isso, que o fizeram por dinheiro. Os cliques valem dinheiro. Lá voltamos ao mercado. O mercado é ótimo, mas precisa de freio e contrapesos.’
E as soluções? ‘Têm de ser atuações muito rápidas. Tem que se envolver as gigantes tecnológicas, têm de ser criados procedimentos com garantias adequadas. Está em causa potencialmente o valor da liberdade de expressão e de liberdade de informação.’ No entanto, ‘este tipo de situações tem de ter resposta. No campo regulatório, cível, criminal. O potencial de danosidade é imenso em sociedades cansadas. As pessoas não têm tempo para fazer checking das notícias. O que querem no fim do dia é ler os títulos e ir dormir.’
Elogias as democracias militantes’ com ‘dentes’ para defenderem a sua integridade. Como na Alemanha, que pondera aprovar legislação que puna veementemente a propagação de notícias falsas nos dias antes das eleições e tem um departamento para a proteção da democracia (sim, chamado assim mesmo).
As questões de desigualdade de género também a preocupam, mas temperadas com a atenção que sempre devota às desigualdades sociais – um tema quente para os próximos anos, dada a tendência de se acentuarem por via do enriquecimento exponencial de muito poucos.
Nota que além do glass ceiling para as mulheres há também um ‘class ceiling’ para os dois sexos. Chama a atenção para as quotas (às quais é favorável no setor público) nas empresas privadas poderem beneficiar apenas as mulheres das elites, que ou não tiveram filhos ou optaram por entregar o cuidado dos filhos a outras mulheres (e os pais fizeram o mesmo, digo eu). Refere que nos Estados Unidos a percentagem de senhoras de limpeza que sofreram agressões sexuais é superior a 60%. ‘Por isso sim, sou feminista, mas interpreto os direitos das mulheres como direitos humanos e vistos numa perspetiva de interseccionalidade’, porque ser mulher não é o mesmo que ser mulher negra, mulher lésbica, mulher pobre.
Evidentemente Teresa Violante clama com os custos profissionais que a maternidade traz. ‘Se uma mulher opta por interromper a carreira por causa dos filhos vai ter custos e esses custos é que não deviam existir. Queremos mães felizes, filhos felizes, até por uma questão de saúde mental e dos custos que a falta dela podem trazer.’
E, mesmo a terminar, depois de uns saborosos risottos acompanhados de um copo de vinho branco, Teresa Violante lança umas farpas à ‘polarização excessiva do debate político’. Anseia por um recentramento do PSD no espectro político. Um PSD herdeiro daquele que na Assembleia Constituinte, lembra, foi o partido mais importante em tocando ao direito à habitação. Desde logo porque ‘há desafios que exigem consensos transversais e a polarização é imobilizadora’.
E o ar do tempo não está para imobilismos. Nem para silêncios em se tratando de defender as democracias, os direitos humanos ou valores incontornáveis. Ou promover os debates que contam.
Texto de Maria João Marques e fotografias de Isabel Santiago.