Há uns tempos fui convidada para participar num dos paineis da Youth Summit/Encontro Nacional de Juventude 2018, com o tema ‘Direitos Humanos na Era do Multiculturalismo‘, à volta dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É um tema que me interessa, e já tenho escrito sobre esta tensão várias vezes. Na semana passada encontrei este texto da The Economist – ‘Culture is Not an Excuse to Oppress Women’ – também sobre os hábitos culturais que são muitas vezes formas de opressão sobre as mulheres – e que, para Margot Wallström, a ministra sueca dos Negócios Estrangeiros, não se pode tolerar. Pelo que me decidi escrever um esboço dos meus dois cêntimos sobre o tema.
Antes de tudo, esclareço que sou uma feroz defensora dos fenómenos que envolvem interações entre culturas e diferentes zonas e países e continentes. Somos todos resultado de fusões culturais, assimilações, influências, colonizações culturais, misturas. O mundo nunca foi estanque. A maior parte das línguas do mundo – tirando as da Ásia Oriental, o turco e uma ou outra na Europa – são línguas indo-europeias, todas elas brotando de uma fonte comum que terá surgido ali entre a Grécia e a Pérsia no início dos tempos. No século II a.C. tivemos a primeira globalização, que o ímpeto para comerciar, conhecer novas paragens e aprender com as outras culturas não era parado nem com a incipiente tecnologia de então. Na Europa temos uma religião maioritária que nasceu na Ásia, o maior país islâmico (de uma religião da Península Arábica) é a Indonésia, no Sudeste Asiático. O budismo, nascido e criado na Índia, sobrevive agora só fora da Índia, na versão Theravada no Sudeste Asiático e na versão Mayahana na China. Os produtros alimentares a que estamos habituados são originários do mundo todo. Com os descobrimentos, Portugal e depois os outros europeus, ligaram o mundo todo, mas antes disso já havia, desde que os juncos foram inventados, um intenso comércio intra asiático que ligava o Índico e os mares da China. Zheng He chegou à costa oriental africana. Os árabes dedicam-se há milénios à atividade comercial de pequena e longa distância. Há comunidades que quase se confundem com uma história de diáspora: os judeus, os chineses (que têm uma diáspora milenar para os países do rim do Pacífico), os irlandeses e, sim, os portugueses.
O ponto onde estamos é o resultado de uma profusão de misturas – raciais, culturais, comerciais. A globalização de finais do século XX veio apenas acelerar o que já existia, agora com maiores facilidades tecnológicas. Nada disto é mau. Historicamente, os períodos de maior florescimento cultural, científico e económico foram aqueles em que as condições políticas (paz, possibilidade de comerciar com outros povos, inovações tecnológicas que melhoravam as viagens) permitiram trocas intensas entre os povos e zonas diferentes do globo. Os países desenvolvem-se e florescem culturalmente e economicamente quando estão abertos a influências e povos e mercadorias externas e definham quando decidem isolar-se. Sempre foi assim.

E agora temos numerosas sociedades multiculturais, de pessoas com origens familiares muito diversas, com raízes em partes muito diferentes do mundo. O que é bom. As sociedades europeias – que são as que se vêem mais atacadas com esta diminuição da sua identidade – têm muito a ganhar com a afluência de pessoas de outros países. E não só por questões de sustentabilidade do estado social e do pagamento de pensões em países com baixa ou muito baixa natalidade. É bom para a produção cultural, para todas as indústrias criativas, que ganham sempre em ir buscar novas influências, materiais, referências. A moda, a gastronomia (e, logo, a restauração e o turismo), todas as artes. Os serviços ganham – por exemplo, os serviços de cosmética e massagens e tratamentos corporais, em explosão com a vinda para a Europa de brasileiras e asiáticas. O comércio ganha, porque há mais produtos à venda, mais consumidores, mais necessidades para serem satisfeitas. As empresas que trabalham em ambiente internacional ganham, porque podem recrutar pessoas com um maior conhecimento dos mercados e processos estrangeiros. E por aí adiante.
Em suma, a diversidade dentro de uma comunidade é, para mim, um bem.
Isto dito, não podemos escamotear a parte sombria da realidade. Nem o facto de muitas culturas, sobretudo do mundo não europeu ou europeízado, terem hábitos e tradições que são atentatórios aos direitos humanos e, sobretudo, aos direitos humanos das mulheres. E, sim, este valor de defesa dos direitos das mulheres não pode ser comprometido pela valorização apenas dos benefícios da diversidade. Sempre que hábitos e tradições culturais atentarem contra os direitos humanos das mulheres, ou contra quaisquer conquistas das mulheres em termos de representação política, não discriminação na legislação, o que seja, o que tem de prevalecer é a defesa dos direitos das mulheres. (Tal como, de resto, hábitos e tradições das sociedades ocidentais que atropelem direitos das mulheres não devem ser tolerados. A impunidade para a violência sexual é um deles, existente ainda até no mais igualitário ocidente. Ou, como se viu nos últimos dias, a tradição de bater e matar mulheres que temos em Portugal.)
É certo que os direitos humanos são um conceito intelectual e filosófico de raiz europeia. Refletem os valores da cultura europeia/ocidental e propõem uma visão marcadamente eurocêntrica. A imposição do respeito pelos direitos humanos é até encarada por alguns críticos como um hábito colonial ou uma forma de imperialismo. (Como, de resto, já ocorreu. Foi, por exemplo, o império britânico – na sua fase ‘jóia da Coroa’ e já após o governo indiano pela dupla fandanga East Indian Company e Império Mughal – que proibiu os satis, aquele bonito hábito de queimar as viúvas da subcasta rajput na pira funerária dos maridos falecidos, na Índia.) Donde, as culturas não europeias têm maiores dificuldades, e por vezes necessitam de recursos financeiros, que lhes escasseiam, para alcançar esta fasquia.

No entanto, se estas questões se podem colocar para a diplomacia, as relações internacionais, a decisão de ajuda governamental a países subdesenvolvidos – exige-se o respeito pelos direitos humanos ou procura-se outra forma mais eficaz de relacionamento e exigência? -, em boa verdade dentro dos países europeus não há razão para estas contemplações. Nos países europeus o respeito pelos hábitos e tradições culturais dos migrantes que cá residirem tem de ceder primazia, em caso de conflito e sem apelo nem agravo, aos direitos humanos e, mais, aos direitos das mulheres.
Faço esta distinção entre direitos humanos e direitos das mulheres porque outra das limitações da DUDH – que inicialmente se chamava, sintomaticamente, de Direitos do Homem – tem a ver com a construção dos direitos do ponto de vista masculino e dos direitos que importa proteger do ponto de vista masculino. Assim, vários direitos se relacionam com a proteção face à violência que um estado pode exercer sobre um cidadão – que é o maior perigo enfrentado pelos homens – mas poucos direitos humanos se concentram em perigos que para as mulheres são igualmente significativos (mas não para os homens): os perigos que os familiares masculinos e as próprias comunidades representam para as mulheres. Os agressores das mulheres geralmente não são os estados, mas outras pessoas. Donde, os direitos humanos são uma plataforma digna e desejável, mas ainda incompleta e, no caso das mulheres, são simplesmente o patamar mínimo, ao qual bastante precisa de ser acrescentado. (Desde logo a ONU acrescenta, com o CEDAW e o plano de ação da Conferência de Beijing de 1995.)
Mas regressando, há uma thin red line entre a proteção da diversidade e das heranças culturais e os direitos humanos e os direitos das mulheres. Estes últimos têm de prevalecer. A própria ONU, na Declaração Universal para a Diversidade Cultural, de 2001, no artigo 4º, constata claramente que ‘ninguém pode invocar a diversidade cultural para infringir os direitos humanos garantidos pela lei internacional, nem limitar o seu âmbito’.

Há várias bandeiras vermelhas nesta tensão. Digo algumas.
A mutilação genital feminina, esse crime hediondo pelo qual ainda ninguém foi preso na União Europeia. É necessário perseguir, acusar e condenar todos o envolvidos: quem pratica, quem incentiva, os pais das menores que sejam submetidas. Com mão pesada. Conversa e boas intenções não bastam.
Os casamentos forçados. Incluindo os que implicam viagens coercivas das adolescentes para fora da UE onde, nos países de origem da sua família, são forçadas a casamentos contra a sua vontade. Novamente, há que perseguir, acusar e condenar todos os envolvidos, especialmente os pais das raparigas raptadas e forçadas.
A violência doméstica, tão bem escondida por baixo de burqas e niqabs. Yasmin Alibhai-Brown, no livro Refusing the Veil, constata como é um segredo que toda a gente sabe a epidemia de violência doméstica nas comunidades islâmicas britânicas, nunca detetada graças a essa maravilha preta que são os niqabs, tão práticos para ocultar olhos negros e lábios rebentados e hematomas.
Tudo o que se relaciona com o direito familiar, a começar pela tutela dos filhos em caso de separação ou divórcio. Terminando nos direitos de herança das mulheres, que são tremendamente enfraquecidos e diminuídos pela aplicação da sharia e das dharmashastras do hinduísmo.
Mas não só estes exemplos limite. As raparigas das famílias islâmicas (de onde vêm os casos mais problemáticos) têm direito – e isso tem de lhes ser assegurado pelos vários organismos e níveis estatais – ao acesso à educação, ao exercício de uma profissão e, ainda, à socialização que lhes permita um desenvolvimento pessoal completo. (Lembro que as adolescentes que fugiam de Inglaterra para se tornarem mulheres dos guerrilheiros do ISIS eram geralmente raparigas de famílias muito desestruturaras ou de famílias religiosas conservadoras, a quem não era permitida vida social com os seus pares nem fora do círculo restrito da família. A fuga para um cenário de guerra era a única possibilidade de libertação e aventura que vislumbravam.)
Em suma, nos países europeus a diversidade cultural deve ser valorizada e acarinhada, garantindo-se que não coloca em causa nem atropela direitos das mulheres. Em caso de tensão e conflito irresolúvel, a escolha terá de recair na proteção dos direitos das mulheres. Mais ou menos o contrário do que tem sucedido.