Apagar as mulheres (parte 3) na História e na Memória Coletiva

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Fotografia de Johnny Milano para o New York Times.

Hoje continuo para outras áreas. Por exemplo a História. As mulheres viveram desde que há homo sapiens – tal como os homens. Foram sujeitos dos eventos políticos, das alterações ambientais e cataclismos naturais, das guerras, revoluções, períodos de paz, viagens para outras paragens – na mesma medida que os homens. No entanto, a História continua a ser escrita tendo apenas em conta os protagonistas masculinos – desde logo porque das protagonistas femininas há menos fontes, que já então se menorizava o papel político, social e cultural das mulheres.

O resultado? É-nos dado a crer que as mulheres foram somente sujeitos passivos de todos os eventos históricos, liderados por homens, sem os influenciar em nenhuma medida. Ou influenciando muito pouco, e apenas na ausência de homens que tomassem a iniciativa. Somos as tais princesas, ao deus dará se entregues a nós próprias, à espera que o cavaleiro andante nos salve. No mesmo sentido, os efeitos dos tais eventos históricos são vistos e relatados sobretudo (ou exclusivamente) na perspetiva das consequências tidas nos homens.

Dou um exemplo. Durante a Segunda Guerra Mundial as mulheres asseguraram, em Inglaterra, nos Estados Unidos e na Alemanha, que a economia produtiva continuasse a funcionar com os homens ativos praticamente todos arrebanhados nas forças armadas. Em Inglaterra, o contacto mais livre das raparigas com os soldados, muitos deles estrangeiros, levou a que às tantas um terço dos nascimentos ocorresse fora de casamentos, e que as autoridades decidissem começar a ensinar métodos de planeamento familiar para evitarem gravidezes indesejadas. Tudo isto (e muito mais) resultou que, para as mulheres, a Segunda Guerra Mundial – esse evento horrível – fosse um momento de libertação, incluindo sexual. Não terá nada de semelhante ocorrido durante as guerras napoleónicas? Não houve alterações nas dinâmicas entre os sexos? Quem manteve as manufaturas funcionando? Que mudanças sociais ocorreram? As mulheres não tiveram nenhum papel nelas? Ninguém nos conta.

Claro que a situação tem mudado. Há atualmente muitos livros sobre os efeitos da História nas mulheres, as protagonistas femininas que a influenciaram, ou, ainda, personagens femininas interessantes. Lembro-me de Aristocrats (um meu favorito destacado, comprado, ainda me recordo, no aeroporto de Dublin), de Stella Tylliard, sobre as quatros fabulosas irmãs Lennox no século XVIII. Ou Georgiana, Duchess of Devonshire, de Amanda Foreman, que mais tarde foi transformado (muito mal) no filme A Duquesa. A mesma Amanda Foreman que escreveu The World Made by Women, precisamente para recuperar mulheres que foram apagadas.

Nem só deste apagamento das personagens femininas vive a História. Também dos assuntos específicos das mulheres. Quando se refere a vida quotidiana, oh surpresa, faz-se através do ponto de vista masculino quase exclusivamente. Questões de gravidez, saúde materna, tutela e poder de decisão sobre os filhos, particularidades específicas das mulheres, olha, não sabemos. Como se passava com a menstruação nos campos de concentração no Holocausto? Oh, quem se interessa por pormenores sangrentos? Há uns anos li umas memórias (é onde conseguimos ir buscar os pontos de vista da vida feminina) de uma mulher jovem durante a segunda guerra mundial. Contava como fazia para amamentar o filho bebé durante o blitz em 1940: dava sempre de mamar ao filho dentro do abrigo anti bombas, porque se soasse o alarme dos bombardeamentos a meio de uma sessão de amamentação era um drama interromper com o bebé esfomeado. Mais para o fim da guerra, durante os ataques com os mísseis alemães V1 e V2, nasceu um outro filho e conta como os doentes e as mães recentes se protegiam de possíveis explosões quando soavam os alarmes ou se ouviam os mísseis debaixo das camas de hospital. São pormenores que fazem a História da vida quotidiana, mormente ignorados. Já a vida quotidiana dos soldados é amplamente documentada. As mulheres só aparecem se prostitutas – porque, lá está, eram úteis aos soldados e estavam perto da vida quotidiana das pessoas que contam.

Não sei da vossa experiência, mas do meu lado passei toda a escolaridade, da primária à licenciatura, sem ver mulheres na História, exceto aqueles casos muito incontornáveis, com os curricula de História apagando as mulheres. (Só no mestrado apareceram, mas pouco.) Tendo em conta que os programas são elaborados pelo ministério da educação, e os manuais certificados pelo mesmo organismo, concluímos que este apagamento tem patrocínio estatal.

Fenómeno igualzito se passa para a memória coletiva – que mais não é que a forma como lembramos e celebramos a História. Se as mulheres não são documentadas, claro que também não são recordadas nem celebradas. Vá lá, temos um teatro nacional que se chama Dona Maria II, mas é vermos os monumentos que há pelas nossas cidades, os nomes das ruas e as alusões dos equipamentos coletivos para – tchan, tchan – verificarmos uma grande predominância masculina. Não só por cá. No Reino Unido, Caroline Criado-Perez foi a ativista que conseguiu que Jane Austen aparecesse nas notas de 10 libras – porque reparou que, tirando a Rainha, só homens iriam aparecer no verso das notas britânicas. E por esta proposta inócua – colocar uma escritora incontornável e popular numa nota – recebeu abuso online e ameaças de morte. Tal a aversão que certos misóginos têm a ver mulheres ocupando o espaço público (no caso da memória coletiva) e de se celebrarem mulheres.

A mesma Caroline Criado-Perez fez campanha para que a estátua de Millicent Garret Fawcett fosse colocada em Parliament Square, em vez de num local mais discreto (como sempre se quer para o mulherio) perto da Abadia de Westminster. É a primeira  mulher a ter uma estátua em Parliament Square.

E depois temos casos em que as mulheres – que têm a culpa de tudo desde Eva, não esquecer nunca – são boicotadas da tal celebração histórica por culpas alheias. Catarina de Bragança, mulher de Carlos II de Inglaterra e a pessoa que deu o nome Queens ao bairro de Nova Iorque, era para ter uma estátua de grande dimensão junto junto ao rio Este, virada para Manhattan. Não pôde acontecer, porque Catarina de Bragança – cujo único poder político efetico que teve foi, já viúva, como regente em Portugal, e que era gozada na corte britânica pelo seu ar tão meridional (e por não dar filhos a um rei que produzia bastardos em abundância) – foi declarada culpada por ter beneficiado do comércio de escravos (sem fundamentação maior do que existir e ser realeza num mundo onde ocorria a degradante escravatura). De caminho, Audrey Flack, a artista que ganhou o projeto e alcançaria projeção profissional com a construção da estátua, também viu dez anos de trabalho esfumando-se.

O resultado (repito) de todos os apagamentos das mulheres? A aparência de que as mulheres passaram milénios fechadas nas cozinhas e nos quartos onde brincavam os filhos pequenos, e que o espaço público foi só de homens. De que essa é a ordem natural das coisas. Pelo que o melhor é continuar como sempre (não) foi.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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