Da Coragem

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Esta não é só a história de uma estátua. É o entrelaçar de histórias de mulheres destemidas. 

“A coragem gera coragem em todos os lugares”. Não há frase mais adequada para a história de vida de Milicent Garrett Fawcett. Não há melhor resumo da história que culminou com a construção desta estátua.

Caroline Criado-Perez ainda estava a recuperar das lutas que havia travado nos últimos tempos. Não esperava, com certeza, comprar uma terceira batalha, mas ninguém nos prepara para as epifanias quotidianas. Foi em Londres, no dia Internacional da Mulher, enquanto passeava o seu cão por Parliament Square, que Caroline olhou para a praça com atenção e soube que tinha de agir mais uma vez. Onze estátuas. A história de um país, o centro político e geográfico da Grã-Bretanha, o berço da democracia. Zero mulheres. 

Nascida no Brasil, filha de pai argentino e mãe inglesa, tendo vivido em países como Portugal, Espanha e Taiwan, Caroline é, evidentemente, uma mulher do mundo. O feminismo, conheceu-o na faculdade de Oxford e nunca mais deixou de lutar por ele. Travou a primeira batalha quando soube da intenção do Banco de Inglaterra de eliminar o retrato de Elizabeth Fry, a única mulher não pertencente à realeza a ser representada nas notas inglesas, no verso das notas de cinco libras. Em  resposta, redige uma petição, que rapidamente recolhe trinta e cinco mil assinaturas, reivindicando que Jane Austen conste nas novas notas de dez libras. Pressionado politica e mediaticamente, o Banco de Inglaterra defere o pedido. É na sequência desta vitória que Caroline tem a infeliz oportunidade de medir o pulso ao estado do machismo no seu país. Em apenas doze horas, recebe 50 tweets abusivos. Durante dias, são inúmeras as ameaças de violação e de morte. O pânico instala-se. O problema das ameaças cibernéticas, diz ela, é o anonimato do agressor, a imprevisibilidade do desequilíbrio de quem ameaça. Em cada pessoa, o perigo. Caroline perde peso, fecha-se em casa, mas nem por isso vira a cara à luta. Processa os agressores e redige nova petição, desta vez para obrigar a plataforma Twitter a criar um botão de denúncia de tweets abusivos. Milhares de assinaturas depois, contando com o apoio de personalidades ilustres das mais diversas áreas, Caroline ganha a segunda batalha, obrigando o Twitter a repensar a eficácia e celeridade da política de defesa dos seus utilizadores. 

É, então, no já referido dia Internacional da Mulher, que Caroline começa de imediato a sua pesquisa. A deprimente contagem de apenas três porcento de estátuas de mulheres não pertencentes à realeza  – menor do que a percentagem de estátuas de homens chamados John – força Caroline a agir.

Esta obsessão com a maior representatividade das mulheres em praças e notas não é mera teimosia. Caroline, inteligente e perspicaz, cedo se apercebe da estreita relação entre existência de referências e progresso da causa.

Façamos um parêntesis para formular uma lista de pessoas que fizeram de nós o que somos hoje. Os nossos pais, com certeza, marcarão presença. Família e amigos, também. Mas não só. Na minha lista, por exemplo, estão histórias inspiradoras, mulheres e homens de todas as idades, cores e feitios, verdadeiros exemplos de dedicação e superação . É preciso que nestas nossas histórias pessoais tenhamos espaço para a diversidade. Para que compreendamos lutas alheias. Para que treinemos a compaixão. Especificamente no feminismo, para que haja uma consciência histórica de que somos, hoje, anãs aos ombros de gigantes. Diz Hillary Clinton que é preciso uma aldeia para educar uma criança. Caroline concluiu, naquele dia, que o centro da aldeia londrina só tinha referências masculinas. E por muito cansada que estivesse, não podia permitir tamanha desigualdade. 

Punha-se então o seguinte problema: que personalidade escolher?! 

Não podia ter havido melhor escolha. Milicent Fawcett é um daqueles exemplos de mulher que, a ter nascido homem, teria com certeza sido homenageada mais cedo e mais vezes. Nascida em Suffolk, a oitava de dez filhos de um casal de comerciantes, Milicent tem precoce contacto com a causa feminista através da sua irmã Elizabeth, que mais tarde viria a tornar-se a primeira médica de Inglaterra. Ao assistir a um discurso do feminista John Stuart Mill, Milicent decide dedicar o resto da vida à promoção da igualdade de género. É no seio da causa que conhece o seu marido, com quem tem uma filha. Conciliando profissão e família, Milicent torna-se dirigente de topo do movimento sufragista, mais pacífico e com maior base de apoio do que o movimento das rebeldes sufragetes. Durante décadas, Milicent recolhe assinaturas, faz campanha, pressiona deputados e escreve brilhantemente. Envolve-se em causas paralelas como a criminalização do incesto, torna-se fundamental na cena intelectual inglesa. É co-fundadora do Newham College, em Cambridge. Em 1901 é enviada especial à África do Sul com o propósito de elaboração de relatório sobre as condições dos campos de concentração criados durante a Guerra dos Boéres. É Presidente da União Nacional das Sociedades de Sufrágio Feminino de 1897 até 1919. Depois de seis décadas de luta, vê, finalmente, em 1928, o direito universal de voto a ser concedido às mulheres. Morre no ano seguinte, em Londres.

A história impressionante de Milicent é, como todas as histórias, um produto  das comunidades a que pertencia: família, academia, feminismo. Era necessário que a sua homenagem honrasse estes núcleos e coincidisse com o seu perfil nunca egocêntrico. A estátua, obra da artista Gillian Wearing, é, por isso, diferente. Rejeita o retrato grandioso, a glorificação do ego presente nas estátuas vizinhas. Acrescenta na base fotografias de outros importantes membros do movimento sufragista. Homens e mulheres. Os anónimos são trazidos para a história e a história faz, finalmente, justiça aos esquecidos.

Em Abril deste ano a estátua foi inaugurada com pompa e circunstância. A simbologia está toda lá. Duas jovens – representando o futuro; Caroline – representando a determinação; a tetraneta de Milicent – representando a herança familiar e Theresa May – representando a concretização da igualdade de género – sobem ao palco e destapam a figura de uma Milicent de cinquenta anos, vestindo um inglesíssimo conjunto em tweed, segurando firmemente uma faixa apelando à coragem. Tão consensual e tão magnânimo. Como a causa sempre foi e deverá continuar a ser. 

Chego a Londres e salto logo para o autocarro. Saio em Westminster e sento-me, comovida. Mulheres e homens de todas as idades e cores vão parando em frente a Milicent. Uns perguntam quem é, outros explicam de cor, muitos pedem ajuda ao Google. Uma inglesa explica, com palavras gritadas e gestos largos, a importância da estátua a um turista italiano. Selfies são tiradas em catadupa. Os mais curiosos circundam a base para admirar as fotografias dos restantes sufragistas. Com alguma emoção, concluo que, por causa de uma rapariga da minha idade que resolveu não ignorar a injustiça, mais pessoas tomarão conhecimento da vida de uma grande mulher e, consequentemente, da história sofrida, prolongada e vitoriosa do sufragismo. 

Como a coragem gera coragem em todos os lugares, tenhamos nós, mulheres portuguesas, mais coragem. Que este artigo e estes exemplos sejam só o começo. Há muitas estátuas por erguer e muitas histórias por contar.    

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Teresa Morais tem 35 anos, é jurista, tradutora e activista. Depois de viver em São Paulo e em Londres, voltou, há dois anos, à Lisboa que a viu nascer. Gosta de biografias, boas revistas, boas séries, bons políticos e bons amigos. Ouve música de todos os estilos, a toda a hora, em qualquer lugar. Está no Capital Magazine por acreditar ser esta a hora de falar de causas e de fazer melhor política em Portugal.

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