Ter filhas: a alteração das expetativas para as mulheres e a razão porque o anti feminismo vai falhar

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Imagem de Isabel Santiago.

Há uns meses estive em Taiwan numa viagem para ver o que o país tem feito para promover a igualdade de género. E uma das notas que tomei no meu caderno (de elásticos e com o mapa de Veneza na capa; era um digno caderno) tinha a ver com a baixa natalidade de Taiwan – que é ainda mais baixa que em Portugal, no top das mais baixas do mundo, cerca de 1 filho por mulher em idade fértil. (Nós termos cerca de 1,3 filhos/mulher em idade fértil, e a taxa de reposição de gerações é 2,1 filhos/mulher em idade fértil.)

Esta baixa natalidade significa que a maioria dos casais só tem um filho. Cerca de metade das vezes, tem uma filha. É fenómeno sabido e conhecido como no mundo desenvolvido, com a diminuição da natalidade (e da mortalidade infantil e o aumento da esperança média de vida), os pais se começaram a envolver muito mais na educação dos filhos, aplicando-lhes recursos, tempo, investimento financeiro. Tudo resultante de outro investimento: o afetivo – a ligação aos filhos tornou-se a mais importante de todas as relações humanas. E porque contam que haja retribuição na altura da velhice, incluindo apoio financeiro se for o caso.

Os pais do mundo desenvolvido esforçam-se na educação dos rebentos, têm para eles altas expetativas, tudo fazem para lhes proporcionar experiências enriquecedoras, desejam-lhes profissão e sucesso financeiro. Tanto para filhas como para filhos.

Por tudo isto, a tal nota, made in Taiwan, no meu caderno observava que este investimento e expetativas nas filhas únicas de vários casais inevitavelmente levaria a mudanças para melhor na paridade entre os sexos. Os pais a quem calhou uma filha não lhes ensinarão que devem desistir da profissão quando casarem, nem que é bom não serem ambiciosas nem se atirarem a uma carreira, nem as educarão para serem as empregadas dos maridos.

Em Portugal passa-se algo semelhante. Muitos casais têm uma única filha. E têm para ela exatamente as mesmas expetativas que teriam se fosse um filho.

Pelo que acho imensa piada aos reacionários hiper conservadores que agora se fazem ouvir com tanto estrépito nos partidos de direita e nas redes sociais. Supõem estas almas – convencidos que estão de serem a voz verdadeira do bom povo português e que toda a gente vive no seu mundo imobilista de famílias numerosas – que os pais de filhas ficam satisfeitos se elas se tornarem donas de casa, sem rendimento próprio, sem profissão, que não têm sonhos nem expetativas para as filhas, que não se preocupam com a violência sexual quando as filhas entram na adolescência. E que, é vê-los apressados, vão a correr apoiar ideias políticas que reforçam os papeis tradicionais das mulheres, que as remetem para a esfera doméstica, que as arredam dos locais de poder e decisão, que as vêem no máximo como cheer leaders dos homens que se distinguem, que não corrigem desigualdades salariais entre homens e mulheres, que constroem ambientes de grande violência ou conflitualidade que tolham a liberdade de movimentos das mulheres.

O género de pessoas que adota valores muito conservadores tem regra geral personalidade pouco empática, pelo que desentende completamente o que os demais esperam e pensam e sentem e desejam para si e para os seus (e suas). Não entendem que o amor às filhas se sobrepõe a ideologias malignas que atacam os direitos e as liberdades das mulheres. E que um ataque que fazem às mulheres é um ataque que fazem às mães e pais de filhas.

Mas nem é necessário que sejam filhas únicas para os homens mudarem quando lhes nasce uma filha. Pode ter-se várias filhas ou até filhas e filhos. Tem havido pesquisa sobre a forma como ter filhas afeta o comportamento dos pais, e os resultados são curiosos:

– Ter filhas faz com que os CEO homens dêem maiores aumentos aos seus empregados e sobretudo às mulheres que trabalham nas suas empresas (enquanto que ter filhos resulta em maiores aumentos para si próprios e menores para os seus trabalhadores). Os homens CEO com filhas também dirigem empresas que levam mais a sério a sua responsabilidade social.

– Ter filhas faz com que os políticos homens votem de forma mais amigável para os assuntos femininos.

– Ter filhas faz com que os juízes homens decidam mais a favor de mulheres em questões de direitos reprodutivos e de gravidez no trabalho.

– Homens que gerem empresas de venture capital (capital de risco) que têm filhas são mais propensos a contratarem mulheres para lugares sénior (e, claro, têm melhores resultados).

Não surpreende, porque o contacto com o outro sexo, quando não estamos pré-formatados, altera a nossa visão, faz-nos perceber o mundo de outra perspetiva, desafia as ideias preconcebidas. Em suma, enriquece.

Claro que os machistas inteligentes do ‘o wage gap é explicado por questões de produtividade, diferentes características masculinas e femininas, escolhas de profissões, aversão ao risco das mulheres, blablabla mas nunca por preconceito e discriminação’ e de ‘as mulheres não gostam de política, por isso é que não participam’, também nem aqui entenderiam que as decisões humanas não são tomadas de forma assética e, como nos modelos económicos, com informação perfeita (tal coisa não existe). Mas são tomadas com base nas nossas ideias preconcebidas, nos estereótipos e na cultura e sociedade onde nos inserimos. Certamente dirão, com estonteante perspicácia, que é por coincidência que homens que têm filhas mudam comportamentos: têm a sorte de encontrar mulheres mais competentes para as suas empresas, têm a sorte de ter melhores trabalhadores que merecem ganhar mais, calha aos juízes e gestores e políticos mais liberais terem filhas, e por aí em diante.

Por outro lado, óbvio que há espécimes de particular má qualidade a quem nem ter filhas os faz sair do seu umbigo.

Em todo o caso, é porque os pais e as mães não querem o mal das filhas, não querem que lhes seja retirada a possibilidade de uma profissão tão recompensadora como as masculinas, não querem que sejam dependentes financeiramente dos maridos (o que potencia todos os abusos), não querem que os pontos de vista das mulheres não sejam ouvidos na política e nas empresas, é por tudo isto que vai falhar o ataque feroz aos direitos e liberdades das mulheres. Como diria Sting, the portuguese (and others) love their daughters too.

 

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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