Apagar as mulheres (parte 1): nos media, no trabalho, na ciência

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Imagem de Isabel Santiago

No outro dia estava a almoçar com um amigo jornalista e, falando de livros, quis saber quais os autores vivos que gostava. Respondeu vários, todos homens. (Já só me lembro de Julian Barnes, que também é da minha eleição.) Evidentemente levou de imediato um raspanete por não incluir nenhuma autora na resposta. Referi Alice Munro (Nobel e tudo, por amor de deus), Hillary Mantel, Chimamanda Ngozi Adichie. Vendi demoradamente o peixe da grande, gigante, incontornável Kate Atkinson (quem não adora assolapadamente Kate Atkinson não é boa pessoa). Claro que o meu amigo, sendo, geralmente, pessoa de gostos recomendáveis, conhecia e apreciava a maioria que eu apresentei. Simplesmente, quando questionado, nem se lembrou do sexo feminino.

Ao longo dos séculos tem sido assim. De facto, uma das características masculinas que mais me impressiona (e que, em boa verdade, penso que não há nenhum homem que lhe escape totalmente, ainda que alguns – bons e valorosos – tenham consciência, os que têm, e se esforcem por isso) é a facilidade – em certos casos é mesmo uma deliberação determinada – com que os nossos contributos são desconsiderados, mesmo (ou sobretudo?) quando são pertinentes, inteligentes, argutos, criativos, carregados de razão, plenos de soluções adequadas para o problema em discussão.

Não tem conta a quantidade de vezes que assisti a homens (e muitas vezes, tenho de reconhecer, homens que reputo de medíocres ou medianos) ignorando, apoucando e, nos casos mais doentios, até zombando das minhas opiniões ou propostas para se calarem quando aparecia um outro homem que concordava comigo e as repetia. A partir daí até passavam a elogiar a ideia e a proposta, que coisa original, como é que ninguém ainda tinha pensado nisso (como disse?!). É modo de atuação tão socialmente aceite que é sempre feito às claras, até por escrito. Repito: aconteceu-me incontáveis vezes.

Mas é este o status quo: enquanto um homem não valida uma opinião, uma ideia, um contributo, uma obra, uma proposta de uma mulher, para a maioria dos homens a opinião, ideia, contributo, obra ou proposta da mulher ou não existe ou não vale nada.

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Página 20 do livro Mulheres & Poder, Um Manifesto, de Mary Beard, com o famoso cartoon de Riana Duncan.

Não tenho grandes informações sobre a neurobiologia cerebral dos homens nestas ocasiões, mas não me espantaria que fossem ativadas as zonas do cérebro que lidam com perigos iminentes, em vez de o cérebro continuar com o business as usual de quando se ouve ou lê algo de alguém que está simplesmente e pacificamente a participar numa discussão. Ou serão apenas as limitações cognitivas usuais que os homens sofrem quando interagem com mulheres (sim, isto existe mesmo, não era só impressão sua).

Claro que estas interações não são inócuas. Na verdade têm efeitos grandes e negativos na vida das mulheres. Se numa discussão de amigos estas desconsiderações se podem consertar proferindo algumas imprecações ou mudando de amigos ou de grupo de discussão, em tocando ao mercado de trabalho é diferente.

Esta incapacidade de ouvir e valorizar devidamente os contributos e realizações das mulheres leva a que sejam profissionalmente sub avaliadas (algo também já percebido pela ciência). Donde: são menos promovidas, são-lhes atribuído menos projetos aliciantes onde possam brilhar, são menos recompensadas financeiramente que os homens por trabalho igual e de igual qualidade. O que resulta em maiores constrangimentos financeiros nas vidas femininas (e dos filhos de famílias monoparentais) e menos graus de liberdade nas suas escolhas de vida.

Mas esta disparidade na relevância que se dá aos contributos femininos versus os masculinos não é exclusivo das empresas e do mercado de trabalho – ainda que vá sempre parar à carreira profissional.

Nos conteúdos produzidos por jornalistas nos media e nas redes sociais, observamos o mesmo apagamento das mulheres. Quando um jornalista homem refere um terceiro – seja político, jornalista, cientista, artista, malabarista, o que for – quase inevitavelmente, ou pelo menos maioritariamente, refere ou cita um homem. O resultado? Esse mesmo: parece que as mulheres não existem, que não têm nada a dizer, que não oferecem contributos relevantes, que não contam. Este fenómeno tem tal magnitude que o Financial Times (hurrah por alguém ter percebido o problema!) criou uma ferramenta que informa os seus jornalistas quando nota que estão a citar demasiados homens, depois de ter percebido que apenas 21% das citações do jornal eram de mulheres (as of today continuamos mais ou menos 50% da população). Ah, e que as mulheres, que também são consumidoras, tendem a ler mais artigos com fotografias de mulheres, escritos por mulheres e fogem de artigos all male no conteúdo das referências.

A evidência é abundante. A Vox no ano passado mostrou um estudo que revela como os jornalistas homens que cobrem a política americana em Washington no twitter estão sobretudo à conversa com outros homens: 69% dos retuits que fazem são de outros jornalistas homens, e as respostas que dão são 92% a colegas homens. Claro que estas estatísticas têm de ser temperadas com o facto de o twitter ter mais utilizadores homens (provavelmente de todas as profissões) que mulheres, e ser um ambiente adverso para as mulheres (o que também é sintomático). Mas as desproporções são significativas e significantes. De resto é consistente com outro paper que estudou os jornalistas australianos no twitter e concluiu por uma forte homofilia: interagiam sobretudo com outros jornalistas com características semelhantes, incluindo o sexo.

Os media não apagam só as mulheres jornalistas, mas de todas as profissões. Deixados a si próprios, os jornalistas homens citam sobretudo homens.

Não vi estudos para o facebook, mas do que vejo mantém-se a tendência. Há inúmeros homens com alguma notoriedade que nunca, ou com raridade, partilham peças escritas por mulheres. Os que partilham, também partilham desproporcionalmente mais autores homens. Quando partilham, é inevitavelmente para criticar. E tanto serve para notícias, reportagens ou colunas de opinião.

(Eu, que tenho graças a deus mau feitio e gosto de reciprocidade, deixo de partilhar os autores em notando este comportamento.)

Na ciência passa-se o mesmo. Os cientistas homens são propensos a citar outros cientistas homens de forma significativamente mais frequente que citam mulheres, o que não se altera nem quando aumenta o número de cientistas mulheres numa determinada área do saber – há mesmo um gender citation gap. Os homens auto-citam-se com muito maior regularidade que as mulheres (o que contribui para o gap). E sucede ocasionalmente que as mulheres, quando são citadas, são dadas como sendo homens (nem deve ocorrer que, de tão interessantes, possam ser mulheres).

Para contrariar esta não existência no espaço público, já foram criadas várias bases de dados que mostrem o trabalho e as publicações de mulheres em variadas áreas: na política internacional, na ciência política, na tecnologia, entre outras. De maneira a facilitar o trabalho de jornalistas e cientistas que não querem excluir os contributos e pontos de vista de metade da população.

O que se passa nas empresas e grupos de trabalho é de mais difícil resolução, porque de mais difícil escrutínio.

Mas para o trabalho de jornalistas, colunistas, opinadores, cientistas, investigadores – bom, está tudo à vista. E, como recordo sempre, devemos usar o poder de consumidoras (e consumidores, para os homens de boa vontade) que temos. Para aqueles autores que apenas consideram relevante a metade da população a que eu não pertenço, bom, certamente não me querem como leitora e consumidora. Desde logo porque não vislumbro qualidade num trabalho baseado apenas em metade da fotografia.

E, nunca esquecer, o apagamento das mulheres no espaço mediático e de discussão pública reforça e legitima o apagamento das vozes e contributos das mulheres no mundo do trabalho – com as consequências que ali em cima elenquei.

(A continuar, este tema, com outras áreas onde as mulheres são apagadas.)

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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