Faço já a declaração de interesses: não adoro Clint Eastwood. É-me uma personagem escassamente simpática na vida fora dos ecrãs, não é dos meus atores de eleição, alguns filmes em que nos bafejou com a sua graça de representação são-me bastante indiferentes (não entendo, por exemplo, a loucura quase universal com as Pontes de Madison County, que também realizou e produziu). Contudo, apesar de nenhum fazer parte dos meus filmes de culto, vários das obras realizadas por Clint Eastwood merecem ser devidamente valorizadas. Os mais recentes J. Edgar ou Sully (para mim com maior sabor, que estava em Nova Iorque quando se deu a aterragem de emergência no rio Hudson) mas também os já vetustos (em idade de filmes de Hollywood) A Perfect World ou (um oh tão recomendável) Mystic River.
Clint Eastwood em versão realizador tem uma voz original, muitas vezes amarga, captando e iluminando partes curiosas e improváveis da natureza humana. Não é um realizador nem do óbvio nem do mesmo tema constantemente em loop. Ainda que alguns traços persistam aqui e ali. O heroísmo (dos homens comuns e falíveis). Os outcasts do sonho americano. A guerra ou personagens que passaram por uma guerra. As personagens mais marcantes são geralmente homens. É, de resto, um realizador marcadamente masculino e com um ponto de vista masculino – o que não é nenhuma crítica, torna-o até mais real, já que é sempre sinal de autenticidade e honestidade mostrar-se aquilo que se é.
Correio da Droga – no original um tão melhor The Mule – está nos escalões mais altos da pirâmide dos filmes realizados por Clint Eastwood. Sim, também é o personagem principal, e vai bem, mas a atuação tem sempre aquele senão: nada se lhe pode apontar, mas não chega para ficar under the skin dos cinéfilos. É a história, a narrativa que, no fim do filme, nos põe a dizer ‘bravo’. Todas as personagens estão bem entregues, os atores são competentes, mas nenhuma é de nos por boquiaberta. No entanto, é olhar para o conjunto e o resultado é supimpa.
Earl Stone (a.k.a. the mule, a.k.a. o correio da droga, a.k.a. Clint Eastwood) é um nonagenário que, depois da sua exploração de flores falir, se torna, mais a sua pickup, num transportador de droga, levando até Chicago as cargas de estupefacientes de um cartel de mexicanos. O trailer do filme coloca muito ênfase na investigação policial ao cartel e a este particular correio de droga, mas o fulcro do filme está longe de ser esse.
É que Earl Stone foi um pai negligente e um mau marido. A ex mulher despreza-o, a filha – representada por Alison Eastwood, filha de Clint – não fala com ele (retribuição, de resto, por o pai ter faltado ao seu casamento para ir a uma convenção de produtores de flores). Somente a neta lhe dá algum benefício da dúvida. As viagens com a droga, e os consideráveis pagamentos, vão ser uma forma de compensar de algum modo com a neta o que falhou com a mulher e a filha: paga-lhe o curso de estética e o casamento, e, pelo menos, tenta não lhe falhar. A moldura que sustenta o filme é essa: a tentativa da redenção possível junto dos que se ama e nos amam. Ao mesmo tempo lembra que não escapamos, nem quando há a tal redenção possível, às consequências das nossas ações e escolhas.
Mas se os alicerces são os do parágrafo acima, o que dá colorido ao filme é outra coisa. Afinal estamos em 2019 e os Estados Unidos têm um presidente com uma feroz retórica anti imigrantes latinos e quer construir um muro intransponível entre o México e os States. E o filme tem abundância de latinos. Os maus – os do cartel de drogas, alguns dos quais afinal, debaixo da capa de durões, conseguem ter alguma humanidade, em proporções variáveis, gerando-se uma espécie de amizade e lealdade entre o branco que nunca levou uma multa de estacionamento e os criminosos latinos. E os bons. Os empregados da exploração de flores falida de Earl Stone eram latinos – e o ex-patrão entrega-lhes cheques com o pagamento final pedindo desculpa por não lhes poder pagar mais. As boas relações são evidentes. O momento mais divertido do filme é a paragem de um latino numa pickup, confundido pelos agentes do DEA com o correio de droga, mas afinal cidadão cumpridor da lei, que não pára de palrar nervosamente e de constatar como aqueles são os minutos mais perigosos da sua vida, que está muito ansioso e sabe bem que corre o risco de ser morto pela polícia só por ser latino. Um dos agentes diz-lhe em espanhol para se acalmar, mas o latino não sabe falar espanhol.
De resto, é um filme sobre um idoso – de ar frágil e tremeliquento mas com boa cabeça e discernimento. Numa época de envelhecimento populacional e quando os grupos etários mais velhos têm dinheiro e saúde para ir ao cinema, é uma simpática característica do filme. E, tal como aconteceu com A Private War, o argumento de The Mule baseou-se num artigo jornalístico, desta vez no New York Times: The Sinaloa Cartel 90-Year-old Drug Mule, de Sam Dolnick. O que é mais um atestado de como se pode contar uma boa história, carregada de natureza humana, num artigo jornalístico bem escrito.