Cartas de amor e de guerra

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Imagem de ITV

Não é fenómeno que surpreenda: à medida que vai morrendo quem experimentou na primeira pessoa um determinado evento marcante, a memória coletiva desse evento tende a esboroar-se. E como por vezes os eventos marcantes da História são tão incontornáveis e horripilantes que não podem de todo ser esquecidos, há quem se dedique a recolher e armazenar as histórias dos protagonistas (por vezes involuntários e a contra gosto) para que perdurem para o futuro. Claude Lanzmann filmou o monumental Shoah (e que duro é ver a dor que os sobreviventes do Holocausto ainda carregavam ao contarem a sua vida nos guetos e campos de concentração) e Dori Laub criou o Fortunoff Video Archive for Holocaust Testimonies, com a Universidade de Yale – ambos para guardarem as histórias na primeira pessoa dos judeus no Holocausto. Pela necessidade óbvia: os sobreviventes do Holocausto começavam a morrer e o seu testemunho não podia perecer também.

Mas mesmo a Segunda Guerra Mundial foi desaparecendo dos temas pop, bem como o Holocausto. Na década de 1980, com alargamento para a década seguinte, era comum produzirem-se livros e filmes com ação durante a Segunda Guerra Mundial. Consumi de ambos a rodos. Entretanto foram escasseando, com um ou outro resistentes para lembrarem que eram exceção. Donde, não surpreende que a Grande Guerra de 1914-1918, mais distante e portanto mais etérea, estivesse, durante praticamente toda a minha vida, ausente das narrativas, da arte, da comunicação social, das conversas de família e de amigos.

O que, sim, me surpreendeu foi a profusão de histórias familiares que apareceram pelas redes sociais a propósito do centenário da Primeira Guerra Mundial. Um ou outro documentário, dois ou três livros de divulgação histórica, um filme ou uma série de televisão, todos eram de esperar. Mas, afinal, muita gente tem uma história familiar ligada à Grande Guerra e que não foi esquecida. E, felizmente, tiveram ímpeto de contar, por vezes até de partilhar fotografias de família.

Ora eu também tenho histórias familiares com a Primeira Guerra Mundial, porque o meu Avô materno participou nela. Em boa verdade, a minha história preferida contada pela minha Avó materna é deste tempo. Sendo eu filha tardia de uma filha tardia, tive uma Avó que nasceu ainda, resvés, no século XIX. E que durante a tal Grande Guerra tinha o noivo algures em França, bem como muitas outras meninas. Sucede que nas redondezas a minha Avó era a única jovem casadoira que tinha ido à escola e sabia ler e escrever. (A sua irmã já era casada, o que a desqualificava para as funções que vou contar.) E assim, por esta ordem natural das coisas do Portugal pobre e analfabeto de inícios do século XX, a minha antepassada tornou-se a escrivã das cartas (de amor?) das meninas das cercanias para os seus namorados do Corpo Expedicionário Português. Como retribuição por esta gentileza, que o orgulho as impelia a oferecer, as ditas meninas presenteavam ocasionalmente à família uma galinha ou apareciam lá em casa para voluntariamente se incumbirem de alguma tarefa doméstica.

Não tive tempo para perguntar à Avó qual o conteúdo das cartas. Da recordação que tenho, não era dada a ímpetos sentimentais suscetíveis de serem transmitidos para a escrita – ou seria por já terem passado tantas décadas depois de ter enviuvado? Quando nova seria mais fogosa? Também me custa ver grandes ardências amorosas nas raparigas analfabetas, maioritariamente camponesas e com preocupações mais prementes que a romantização do seu namorado ausente. Os tempos eram duros e os sentimentos também. Quando não se tem o vocabulário para dar nome ao que se sente e se pensa, estas realidades imateriais como que não têm forma exterior. E, claro, existindo estas tendências apaixonadas nas autoras morais das cartas, provavelmente teriam pudor de pedir à escriba voluntária que as reproduzisse. Os tempos também eram beatos e dados à limitação das paixões.

Do mesmo modo não sei se havia escritos provenientes das linhas de batalha francesas e da Flandres. Os namorados sofriam do mesmo mal: analfabetismo generalizado. No filme Soldado Milhões algo parecido sucede. Um médico (Jaime Cortesão himself) escreve uma carta para a namorada do jovem Milhais, ainda antes de se tornar herói, porque ele não sabia escrever. Haveria no CEP homens também com este cargo designado de escreverem as cartas dos soldados iletrados para os seus interesses amorosos em Portugal?

Estas histórias estão ainda à procura de holofotes. Tal como as outras histórias mais sombrias. Ricardo Arruda neste magnífico texto deu uma boa ideia da devastação da Primeira Guerra Mundial nas famílias aristocráticas e no fim do modo de vida eduardiano upstairs-downstairs das grandes casas senhoriais britânicas. Por cá o efeito não terá sido tão sísmico, mas certamente os soldados regressados não terão ficado imunes àquela doença quase universal dos veteranos da Grande Guerra: o shell shock, o nome que o académico de Cambridge Charles Myers deu em 1915 à estranha doença de três soldados que haviam estado na proximidade de rebentamentos de bombas (daí o nome). Foi como então se chamou ao moderno (i.e., pós guerra do Vietname) stress pós traumático. Apesar de uma doença sem manifestações físicas, tornou-se uma característica demasiado comum da sociedade do pós guerra. Está bem ilustrada por Septimus Warren Smith, a personagem de Mrs Dalloway de Virginia Woolf.

A escala da Primeira Guerra Mundial, exponenciada pelas novas armas trazidas pelo desenvolvimento tecnológico, não foi inesperada e dramática apenas na devastação das zonas de conflito. Roger Luckhurst, em The Trauma Question, descreve assim esta guerra (e traduzo): ‘a linha da frente era uma fábrica de morte mecanizada, como os novos eficientes matadouros que conseguiam processar 200.000 cabeças de gado por dia’. As baixas foram aos milhões, e os sobreviventes vieram maltratados. Sintomaticamente, foi em 1919 que Freud, em Para Além do Princípio do Prazer, pela primeira vez teoriza sistematizadamente o trauma.

Por estes dias lembraram-se e honraram-se os milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial em cerimónias solenes com os chefes de estado reunidos em Paris. E muito bem. Talvez as indústrias de storytelling devessem agora dar voz às histórias dos que sobreviveram para carregar os traumas das trincheiras, bem como dos que amaram durante a guerra (e depois) e até dos que foram escribas intermediários desse amor.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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