Abismos

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Imagem de Isabel Santiago

Como é possível, não é? Alguém de quem se diz que ‘tem tudo’: dinheiro (muito), uma carreira bombástica, um casamento ou relações amorosas estáveis, filhos, fama, a adoração do público, o reconhecimento dos pares e a inveja dos concorrentes. Mas que manda às urtigas as perspetivas de um futuro que toda a gente reputa de promissor e se suicida.

Anthony Bourdain. Namorado de Asia Argento, uma das vítimas de Weinstein e apoiante desde a primeira hora do movimento #metoo. Além de tudo, um aliado das nossas (muito) boas causas.

Dias antes, Kate Spade, uma designer de sucesso, com roupa e acessórios de preços não proibitivamente caros – é como quem diz: fez parte da vida de incontáveis mulheres que vestiram as suas roupas para trabalharem, para se divertirem, para namorarem, para acompanharem os filhos nos eventos marcantes, para viverem.

Não são casos únicos. Há quatro anos a designer L’Wren Scott, com marca própria de prestígio e namorada do ultra famoso e glamouroso Mick Jagger (consideravelmente apaixonado) suicidou-se sem que alguém alguma vez tenha entendido a razão. Ninguém ainda esqueceu o suicídio de Philip Seymour Hoffman. Neste caso a reincidência do uso de drogas explicou um tanto das circunstâncias, como Mimi O’Donnell relata neste bonito testemunho publicado na Vogue. O resto, no entanto, fica no mistério de sempre. Robin Williams, sofrendo uma pesada depressão. E outros. E mais outros.

O discurso sobre estas mortes – ou, melhor, a forma destas mortes – é com frequência um chorrilho de clichés, na melhor das alternativas (‘ah, que pena, que surpresa, tinha ainda tanto para viver’), e quase uma narrativa de ódio, nas piores (‘foi um cobarde, traiu as pessoas que contavam com ele, blablabla’ – tantas vezes vinda daquela gente dura de coração que se diz católica).

Não há nada de bom a tirar destas mortes. Mas podemos aproveitá-las para finalmente falar de saúde mental a sério, sem pudores, sem tretas, com medos (mas paciência).

A depressão foi causa aparente de alguns destes suicídios. O sucesso, o amor, o dinheiro, uma rede forte de pessoas próximas não dão imunidade à depressão. Na verdade podemos questionar se aqui e ali não podem até criar uma pressão para a perfeição e um medo do falhanço (em público) que se revelam impossíveis de lidar. A candura de Aaron Sagers, no Huffington Post, sobre a sua depressão enquanto ‘having it all’ aponta para aí.

Calhando, devíamos também inquirir se a vida materialista e cheia de divisões tribais e ódios em que vivemos não potencia processos depressivos. Ou, até, que a ultra competição profissional, torcendo o nariz a quem não está permanentemente na melhor forma física, mental e intelectual e rasgando as vestes com quem precisa de parar algum tempo, impede curas completas destas doenças. Mas fiquemos agora pela necessidade urgente de tirar o estigma de sofrer uma depressão. Para que quem sofre tenha a liberdade de procurar tratamento. Sem os constrangimentos da vergonha e da reprovação dos robots de forma humana que proclamam que uma depressão é uma fraqueza de gente diletante com pouco que fazer, que se deixa derrotar, malta sem têmpera para aguentar as agruras da vida e continuar. Não é: é uma doença que tem a ver com a química cerebral das respostas aos eventos da vida.

Por outro lado, nunca sabemos os horrores escondidos que viveram as pessoas e com que demónios convivem. A depressão pode estar associada a stress pós traumático. Cathy Caruth, no livro Unclaimed Experience, refere como o trauma aparentemente deteriora a estrutura química do cérebro. Tal pode explicar porque muitos sobreviventes de traumas se suicidam. Como Caruth diz, estes sobreviventes (que afincadamente fizeram por sobreviver ao evento traumático) suicidam-se apenas depois de estarem em completa segurança. Isto é verdade para ex-combatentes, sobreviventes do Holocausto ou sobreviventes de violência sexual.

Em Portugal, o último relatório do Programa Nacional para a Saúde Mental mostra que, entre 2011 e 2017, o registo das perturbações depressivas nos cuidados primários aumentou 74,5%. As perturbações de ansiedade cresceram 72,6%. Claro que os números podem ser um bom sinal – mais pessoas com depressão a perturbações de ansiedade vão ao médico – mas continuam um murro no estômago. Portugal é o quinto país europeu com maior percentagem de pessoas com depressão, empatado com a Finlândia. Curiosamente, somos o único país do sul da Europa com estes números. Os nossos vizinhos que também têm sol e praia deprimem menos. Não sei razões. Mas posso especular se não se deverá ao temperamento mais fechado dos portugueses, à nossa tendência para glorificar o sofrimento, à mentalidade pequena de não ceder a essas modernices de estar com picuinhices da cabeça nem de dar o flanco e mostrar que a vida está, afinal, cheia de cacos. Acresce o facto de, por mim, duvidar que os médicos de família – geralmente quem lida com estas situações – tenham qualquer capacidade para tratar e medicar eficazmente uma depressão.

Mas se alterar este estado de coisas implica mudanças no SNS, já perder a vergonha de falar de depressão e parar de culpabilizar os doentes está ao alcance de todos e torna-se uma obrigação da decência humana. Porque o suicídio não é uma questão de cobardia, de imoralidade, de egoísmo ou de fraqueza. É quase sempre de neurobiologia do cérebro e de doença.

 

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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