‘A Ordem Moral’ (moral?!)

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Vi há duas semanas na HBO o filme A Ordem Moral, de Mário Barroso. (Também está, seriado, na RTP Play). Já tinha lido sobre a história quando o filme apareceu nos cinemas portugueses (não o vi na altura). Antes disso, apesar do apelo dramático e do inegável interesse dos eventos, não conhecia a história, nunca ouvi falar de tal coisa – não sei se pela mania portuguesa doentia e paroquial de não falar de nada que não seja estritamente público; ou se por ser uma história de uma mulher disruptiva, algo que, claro, nunca interessa contar para outras mulheres não ganharem ideias. De todo o modo, ver a história contada com atores de carne e osso foi mais ilustrativo que os textos que li quando o filme estreou.

A Ordem Moral anda à roda de Maria Adelaide Coelho (Maria de Medeiros), 48 anos, então a dona do Diário de Notícias, que herdara do pai, e da sua paixão e relação com o motorista Manuel Claro (João Pedro Mamede), de 26 anos. Era o ano de 1918, esta relação, e o abandono da casa de família por Maria Adelaide para ir viver com o motorista num refúgio beirão, tiveram uma linda consequência: Maria Adelaide foi internada no Hospital Conde de Ferreira (o equivalente no Porto do Hospital Júlio de Matos) e, por iniciativa do marido e do filho, judicialmente declarada incapaz de gerir a sua herança e as suas empresas. Pelo affair com o chauffer e, ora bem, por outro motivo mais material: o marido, o jornalista Alfredo da Cunha, pretendia apropriar-se da herança e vender o Diário de Notícias.

E o filme é um tratado de uma sociedade – a portuguesa, supostamente católica e com bons valores – unindo-se em repugnância por uma paixão de uma mulher que abandona o marido (longe de exemplar, de resto). O ministro que se envolve contra Maria Adelaide por solidariedade ao marido enganado (apesar de ele próprio infiel). O juiz que evidentemente considera louca uma mulher de sociedade que prefere o motorista ao marido bem posto. Os médicos psiquiatras de nome famoso – Egas Moniz e Júlio de Matos – para quem desejos sexuais numa mulher de 48 anos eram sinal claro de doença psiquiátrica. Ótimos cientistas, certo?

Enfim, Freud, ainda em Viena, também concluiu que as mulheres que tratava e lhe relatavam traumas sexuais estavam a fantasiar. Só perante os sofrimentos dos homens – o shell shock da primeira guerra mundial – teorizou o trauma, considerando aí que os sintomas não vinham nem de fantasias nem de exageros dos homens doentes (porque os homens não fantasiam nem exageram, mas as mulheres claro que sim). De resto, quando a doença Stress Pós Traumático foi incluído no DSM da American Psychologycal Association, depois da Guerra do Vietname e dos imensos homens com trauma de guerra que lhe sobreviveram, continuou a ser vista como doença causada sobretudo pelos eventos traumáticos que ocorrem aos homens, que as experiências traumáticas das mulheres e as doenças resultantes contam pouco (tal como as mulheres). A Psiquiatria tratou muito mal a metade feminina da população ao longo das décadas por todo o mundo, não só no Portugal de 1918.

Regressando ao filme e a Portugal. Toda a gente, absolutamente toda, dando palmadas nas costas a um homem que rouba (literalmente e à vista) os bens à sua mulher. Ele, sim, paradigma de bom pai de família e dedicado cidadão. Foi o motorista e o advogado, contratado pelo sindicato dos taxistas, que ajudaram a libertar Maria Adelaide – não foi ninguém das suas relações sociais, familiares ou de amizade. E a própria também batalhou, escreveu, contou e angariou simpatia – pelo menos no público fora da elite lisboeta.

Segundo li, depois de ver o filme, o jornal A Capital, então recentemente criado, além de publicar crónicas de Maria Adelaide contando a sua prisão e interdição e a ilegalidade que as rodeavam, fez em 1920 uma investigação ao Hospital Conde Ferreira. Concluiu que lá estavam internadas mais mulheres como castigo imposto pelas famílias. Foi de tal modo escandaloso que as leis nacionais sobre internamentos nos ‘manicómios’ foram alteradas.

Não há ensinamento moral a tirar desta história de uma ordem social (e jurídica e médica) imoral. Aconteceu há cem anos, dificilmente hoje se interna uma mulher num hospital psiquiátrico por não se conformar à (i)moralidade social vigente, nem por se divorciar ou se apaixonar. Nem é tão fácil roubar-lhe os bens para dispor deles. Porém, a acusação de ‘loucura’, se já não o diagnóstico, continua a ser dirigida com frequência a mulheres que de alguma forma abanam a ordem pretendida para os sexos. Old habits die hard.

Quanto aos protagonistas, bom, Maria Adelaide foi esquecida, fora o livro de Manuela Gonzaga e o filme de 2020. Os médicos (no caso de Júlio de Matos, aparentemente corrupto além de carniceiro; e Egas Moniz que recebeu um Nobel por uma operação atualmente condenada) têm/tiveram cada um hospital lisboeta com o seu nome, quiçá celebrando a sua mediocridade e a sua cupidez.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

1 COMENTÁRIO

  1. O livro de Agustina Bessa Luís, Doidos e Amantes, trata precisamente deste caso. Um retrato da época pela mão de uma escritora portuguesa única.

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