Entre putas e santas fomos sempre vitimas 2/6
Sem trauma a vida não existiria. Nascermos é o primeiro trauma com que somos logo confrontados. Não só pela extrema violência do momento mas sobretudo porque não fomos tidos nem achados neste processo. Se pudéssemos fazer um reset na nossa evolução e o Criador disto tudo nos perguntasse, alguém escolheria vir ao mundo deste modo ou alguma mulher escolheria trazer uma vida por este processo? As coisas são como são e não há nada a fazer. Há muitas situações para as quais não tenho, ninguém tem, respostas. Esta é, seguramente, uma delas. Quando o meu filho me fazia [às vezes ainda faz] perguntas difíceis assim tipo “por que há tachos e panelas?” ou “por que é que o arroz tem que ser cozido num tacho e não numa panela?” a minha resposta é sempre, há muitos anos, a mesma “vai perguntar ao Criador” com as devidas adaptações “sei lá eu por que é que decidiu que o arroz devia precisar de uma superfície maior para evaporação de líquido se não queres comer uma argamassa.”
Tendo por base estes dois dogmas
há coisas que são como são
não há vida sem trauma
implica que não os respeitar, querendo mudá-los ou manipulá-los, acarretou consequências sérias para a sobrevivência da humanidade e do planeta.
Hoje ninguém tem dúvidas de que com os modos de produção de bens, por exemplo a agricultura intensiva, surgiu a desflorestação, a desertificação, a erosão dos solos… provocamos o caos em todo o ecossistema do qual as alterações climáticas, uma das consequências das mais bem estudadas, que por sua vez conduziu à extinção de espécies animais e vegetais, diminuição da camada de ozono, efeito de estufa…
O mesmo se passa com o corpo humano.
Ao patologizar-se esse evento natural que é o parto, primeiro considerando-nos impuras e numa fase posterior portadoras de uma doença de nascença, ao transformá-lo num ato médico teve sempre, em ambas as visões, como objetivo a apropriação sobre o nosso corpo para gerar a nossa submissão ao assumimos que éramos “coisa imprestável, inútil, suja, doente.”
Acrescente-se a este momento uma segunda variável que consistiu em fazer-nos acreditar que éramos incompletas por termos uma enorme inveja de um macho, ele sim, um ser completo por ter mais um órgão do que nós: uma excrescência entre pernas.
Portanto, uma das maiores sequelas, marcada a ferros, foi a de muitas de nós interiorizamos essas condições com consequências gravosas na nossa saúde física e mental.
Há ainda uma terceira que é comum aos dois sexos: as memórias ligadas ao momento do nascimento e que se designa por “hora dourada”. Aquela primeira hora em que tantas experiências da nossa vida futura se jogam. De certeza absoluta que todas e todos temos imagens das maternidades com berçários alinhados numa geometria perfeita. Aí eram colocados nasciturnos que foram retirados à mãe, imediatamente, após a expulsão. Tudo em nome da saúde, pois o parto era um momento sujo, logo altamente prejudicial para o futuro rebento. Nesse espaço estavam enfermeiras, impecavelmente aprumadas nas suas fardas, em modo robot, mudando fraldas e dando biberons na hora marcada. E nós, neste processo de submissão, acatávamos pois só queríamos o melhor para as nossas crias. Não queríamos que eles morressem.
Expandindo esta terminologia sabe-se que perante um evento extremamente traumático é de capital importância uma resposta temporal de reparação o mais rápida possível. Alguém tem dúvidas que num avc, num ataque cardíaco, numa queimadura ou num acidente de carro… o sucesso ou insucesso de uma vida dependerá da rapidez de resposta? Qual o motivo para tanta maternidade e tanto profissional ligada a esta dimensão da vida, o nascimento, continuar a fazer tábua rasa de todo o conhecimento desta primeira hora? Para além do susto que é o momento da expulsão, o ter de repente de respirar sozinho, outras texturas a tocarem-lhe na pele, ter de procurar alimento mas sobretudo a enorme solidão, a raiva pelo abandono daquele coração que ouviu durante nove luas. Haverá maior trauma do que este a que todos somos sujeitos?
Ao continuarmos a ver o ser humano na sua dimensão emocional como um retalho de respostas, dificilmente a reparação de danos de todos os traumas que sofremos na infância – onde não há ninguém que esteja imune a um só que seja, para além do nascimento -, sabemos hoje que a resposta [a essas experiências traumáticas] podem vir tanto através de um vício, que pode ser o do tabaco, de fármacos, como de um modo disfuncional de nos relacionarmos com o outro. Sim, uma personalidade narcísica, por exemplo, pode e deve ser encarada, na minha perspetiva, como uma forma aditiva de estarmos na vida. É aquilo que na terminologia corrente se chamam “pessoas tóxicas”. Pessoas que só conseguem funcionar se tiverem junto de si alguém para dominar, humilhar, desdenhar, amedrontar, manipular… matar. Como nos diz Vygotsky, tudo na natureza vem aos pares, existem certas dualidades que são inerentes ao comportamento e a condição humana dos seres que aqui habitam, como o certo e o errado o bem e o mal.
Assim, o que o efeito Lucifer (aqui ao minuto 31′ 39”) também nos mostra é que para existirem pessoas com capacidades para exercerem o mal tem que haver pessoas que facilitam a sua concretização. Os tais que permitiram, na experiência que os guardas pudessem fazer o que fizeram, incluindo o próprio Zimbardo e a indiferença de todos os visitantes. Repara-se que dos 12 prisioneiros apenas um não acatou a submissão, adoecendo, ao fim do terceiro dia, e dos 50 visitantes apenas uma pessoa se indignou com o que estava a acontecer. Com esta experiência, a noção de bem e de mal, de certo e de errado deu-se um salto notável. Foram questões que deixaram de estar conceptualizadas nas dimensões da filosofia e da religião para passarem a fazer parte do comportamento humano.
É aqui, nesta dimensão do certo e do errado e do comportamento de déspota/submissão que se joga o trauma como causa para muitas das patologias mentais que mais não são do que sintomas.
Regressemos ao tema desta reflexão plasmado no título.
A etimologia da palavra trauma é grega e remete para furar, rutura, arrombamento através de um agente externo ao sujeito da ação. Esse agente externo tece uma rede de ações, qual agulha de croché (lentamente) ou broca (abruptamente) e vai compondo uma malha laçando, furando, escavando, girando, triturando. Onde esse agente tocar nada ficará igual. São ações não previstas, indesejáveis. Provocam danos, lesões, feridas na estrutura original. A sua ação também remete sempre para um corpo, para um ser vivo e pode ser muito bem localizado (uma unha encravada, um dente cariado, uma celulite infecciosa) ou espalhado por todo o corpo (uma alergia, uma sépsis). No trauma há sempre uma agressão física a um corpo que comporta, naturalmente, uma resposta corpórea. Há sempre um ser vivo que é coartado da sua dimensão inteira. Tomemos o exemplo de uma pessoa que nasce cega. Não dizemos que tem o trauma da cegueira. Se ela tiver uma doença genética degenerativa como por exemplo a doença de Stragardt também não dizemos que tem o trauma de Stragardt. Se ela cegar na sequência de um vidro que provocou, por exemplo, a saída do olho já podemos dizer que é uma cegueira traumática. Em síntese, não é o trauma que é uma doença, o trauma é uma causa. Ora esta causa, pode ter múltiplas origens. Pode ir de uma guerra física (armas), uma luta corpo-a-corpo (violação) a uma guerra emocional (palavras), privação (pobreza, liberdade) ou através do despertar de algo que estava “oculto” como por exemplo memória tóxica da nossa infância. As memórias não estão no mundo etéreo. Elas são gravadas no nosso corpo. Lembro de um texto que corria há uns anos sobre bullying socorrendo-se de uma folha de papel amarrotado. Esta forma de explicar o fenómeno é válida para todo e qualquer tipo de trauma.
Em toda esta dinâmica há uma outra variável a ter em conta. Para um mesmo tipo de agressão a resposta de um corpo pode atingir uma enorme panóplia de respostas. Destaco a ausência de sintomas (não ficou marcada) até ao sofrimento mais profundo, podendo resultar in extremis em auto-mutilação e suicídio, passando pela doença mental, doenças crónicas (por exemplo as auto-imunes) ou ausência de ressonância afetiva.
Tratar o sintoma ou ir à causa é uma opção de cada pessoa e de cada profissional.
O que queremos efetivamente?
Numa primeira fase, havendo risco de vida, não há qualquer dúvida que a medicação é o melhor caminho. Também pode ser usada como um facilitador, tipo um descompressor. Deve, tal como um antibiótico, ser uma intervenção pontual e não a eterna companheira.
Lembro-me, agora, de uma criança de 8 anos que chamava ritalina à sua mamã de brincar.
A um terapeuta da área psi, seja da psicologia ou psiquiatria, cabe-lhe ir, gradualmente, tirando e desbravando, com pinças e muita dor, cada película que nos reveste até se chegar à ferida que, teimosamente, tentamos entrapar mas que nunca deixou de purgar. Películas que são a maioria das vezes tão frágeis e transparentes como as de uma cebola, mas em que a primeira camada pode ser grossa e de um bonito amarelo acobreado, de um branco algodão ou violeta ametista.
As estratégias para atingir esse objetivo são várias e a cada pessoa e a cada profissional competirá decidir qual a melhor para aquele caso. Não há uma chapa 5. Esse é outro grande problema, mas que não compete aqui abordar.
Sabemos bem que é um trabalho difícil, moroso, com altos e baixos, progressos e retrocessos. De muito difícil adesão, porque reconhecer que se tem uma dor profunda que nos corrói é [ainda considerado] para os fracos. Sabemos como a sociedade vê as mulheres como fracas e inclusive sabemos bem como muitas mulheres veem as mulheres que têm a coragem de assumir que precisam de ajuda como umas inúteis
“não têm mais em que ocupar o tempo”
Nesta dimensão da existência, a nossa vida emocional, o recurso à medicação tem que ser pontual e nunca como forma de estar na vida. Não digo que não haja pessoas que só assim se aguentam. Conheço-as. Pessoas que nunca tocaram num cigarro ou apanharam uma piela. Mas são pessoas que não passam sem o seu “xanax” para terem uma noite de sono ou quando já há habituação passam para os hipnóticos ou anti-psicóticos. Sim, uma das últimas novidades no mercado é darem anti-psicóticos como indutores de sono.
São pessoas que recusam mexer na ferida. Conheço-as.
Haverá certo ou errado em cada um dos lados da trincheira?
Não tenho dúvidas do lado que estou, mas não julgo quem optar pelo lado da medicação, em exclusivo, como única solução. Por estar do lado que estou criei o blog RESGATE como uma primeira porta para abrir o caminho para a cura. Sabe-se que escrever sobre o que nos amachucou a alma torna logo a dor muito mais leve. Convido todos os que sentirem necessidade de o fazer a participarem.
Não aponto o dedo a ninguém quanto à escolha que fizer pois para o mesmo evento traumático cada uma e um de nós terá a sua resposta e a intensidade que lhe coube nesta vida.
Apenas desconstruo os perigos da defesa da medicação como o único caminho possível e alerto, com a insignificância do meu grão de areia, para a urgência de uma resposta eficaz aos traumas se queremos um mundo melhor.