Natália de Andrade. E a Diva Tragicómica sou eu?

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Natália de Andrade

Natália de Andrade (1910-1999) nasceu em Coimbra e foi uma cantora lírica portuguesa. “Estreei-me num concerto de minha Mãe, muito novinha, no Casino de Espinho, em 1936”. Depois da morte do Pai, viveu em situação de quase pobreza. “De temperamento triste, mas muito sonhador”, Natália refugiou-se na sua arte: “fechava-me em mim própria, esperava sempre qualquer coisa que me elevasse a um mundo interior diferente. Verdadeiramente só à minha Arte pude dar a ternura…”. Gravou o seu primeiro disco aos 54 anos. “Chegaram finalmente os meus queridos discos. Quero-lhes tanto aos meus discos. Como se fossem entes queridos…”. Natália, para muitos ou para todos, vivia fora da realidade, uma Diva iludida, uma Diva Tragicómica.

Natália de Andrade viveu a sua verdade. Em alienação, com patologias mentais não diagnosticadas. Não sei. Não me atrevo a conjeturar, nem tenho esse direito. Julgo? Não. Admiro. Totalmente. E escrevo este texto ao som do seu Best Of.  

Não só das histórias de sucesso se faz a história da uma vida. Natália de Andrade foi uma mulher que acreditou que valia. Foi ridicularizada na altura, acabou só, numa instituição, amparada por desconhecidos. Tocou piano e cantou até ao fim dos seus dias. Viveu iludida, é certo, mas talvez com a sua alma intacta. E pergunto-me se esta mulher teria sobrevivido aos dias de hoje. Teria, com toda a certeza, sido destruída no mundo online. Não lhe teriam permitido a ousadia de ser diferente. Não lhe teriam permitido o nome de Diva. Não lhe teriam permitido Ser.

A Tragicomédia da Era Digital

Diva Tragicómica? Talvez. Mas numa verdadeira tragicomédia vivemos nós dia a dia. E o mundo online é um palco aberto a todos e a qualquer momento. Não há entrada em cena, não há cortina a cair. Não sabemos se rimos, se choramos. É um mundo capaz do melhor e do pior. Corrijo. As pessoas no mundo online são capazes do melhor e do pior. Há momentos de puro gozo e delírio. Há genialidade e humor. Mas tanto se enaltece como se destrói. E o seu contrário, num clicar de olhos. O mundo online está repleto de ódio. Destilam-se comentários violentos ao minuto. Babam-se palavras odiosas que deixam um rasto pegajoso de vergonha alheia. Vivemos numa tragicomédia permanente e em direto. Sem sair de casa. E, muitas vezes, no anonimato da cobardia.

Muito se tem escrito sobre o ódio online e sobre cyberbullying. O bullying não é um conceito novo, nem uma prática recente, mas a dinâmica, o veículo de disseminação, a facilidade, a falta de transparência da sua prática é gritante no universo online.

Uma nova Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, documento na sua essência de inquestionável importância, publicada em Diário da Republica, a 17 de Maio de 2021, entra em vigor no próximo mês de Julho. Controversa em alguns dos seus artigos, refere na alínea 3, do Artigo 4º sobre a “Liberdade de Expressão e criação em ambiente digital” que “Todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.”

Questiono-me sobre a definição e esclarecimento do conceito “utilização responsável do ciberespaço” e sobre as politicas públicas que promovam essa utilização. Quais? Como? Quem?

Questiono-me sobre as medidas de proteção contra formas de descriminação e crime. Quais? Como? Quem?

Para quando? No princípio, no meio ou no fim da peça?

Uma tragicomédia é uma peça dramática que contem elementos tanto de tragédia (assunto e personagem) como de comédia (linguagem, incidentes, desfecho), uma mistura de acontecimentos trágicos e cómicos, portanto. Rir e chorar. Chorar a rir. Chorar a chorar. Rir a chorar.

Se Natália de Andrade fosse viva, com o seu vestido de lamê e casaco branco de plumas, pedia-lhe para cantar a área de Manon, de Jules Massenet: “Je pleurais… je ne sais pas quoi? L’instant d’après, je le confesse, Je riais… Ah! ah!  Mais sans savoir pourquoi? Ah! ah! (sans retenir) ah!”).

E eu estava na primeira fila a assistir…

Se todas as tragicomédias fossem Natália de Andrade.

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