A Tosse, de Mami Pereira – um livro de punho no ar

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A Tosse é o último projeto de Mami Pereira. Livro com uma capa irrepreensivelmente linda (ou não fosse a autora, como de resto eu própria, uma adoradora da art deco que lhe inspira a estética exterior) e versando, no interior, um tema tido como elitista – a música clássica. Mas que, como Mami diz, ‘é um livro de punho no ar’, que ‘de quadrado só tem a forma’ e ‘não é para oferecer aos avós fascistas’. A contradição entre o interior contestatário e o tema erudito de A Tosse é só aparente. Mas centremo-nos na autora antes de regressarmos à sua obra.

Que, refira-se, não é a primeira. Mami Pereira é autora de outro livro quadrado, também de estética (exterior e interior) irrepreensível, com o título auto explicativo MAMIGEOGRAPHIC Crónicas de Viagem. Porque até à vinda desta simpática pandemia que nos prendeu em casa ou, nos melhores momentos, no país, era essa a atividade profissional de Mami Pereira: escrevia crónicas sobre as suas viagens. Primeiro para o Dinheiro Vivo durante três anos e, depois, para o Eco por dois anos. Atividade que retomará ‘assim que possa e assim que o mundo possa’.

A Tosse traz-nos 50 textos de 50 músicas de 50 compositores. Mas na verdade as crónicas não são (só) sobre peças musicais. A última, sobre Leonard Bernstein e o uber famoso West Side Story evoca-nos, claro, a sempiterna questão da imigração e do preconceito para com os chegados há pouco tempo de outras paragens. Os temas do feminismo também por lá se passeiam. Inevitavelmente, no texto sobre a ópera Carmen, de Bizet, com os temas do ciúme, da violência, das mulheres que têm de pagar se não se portarem bem (i.e., se não se isentarem de sexo). Lemos às páginas 75 uma boa preleção, pela pena de Mami, à volta das visões históricas sobre as mulheres, sempre dividas, claro, nessas categorias binárias e estanques que são as santas e as putas.

Outro texto carregado de feminismo traz-nos Lili Boulanger e aquela boa velha questão das mulheres que vêem o seu trabalho e os seus contributos artísticos e profissionais apropriados por – e atribuidos a – irmãos, maridos, primos em décimo terceiro grau, enfim, qualquer parente masculino que consiga descansar o mundo reforçando-lhe a convicção de que claro que não, uma coisa tão boa não pode ter sido criada e produzida por uma mulher. E Florence Price, compositora negra americana dos inícios do século XX? É preciso notar que Mami escreve o racismo e a dupla exclusão que é ser do sexo e da raça que não são os preferidos dos poderes instituídos? Ou não é preciso, de tão previsível a necessidade destes temas?

O caminho de Mami Pereira até às viagens e às crónicas de viagens não foi linear. Licenciou-se em Comunicação Cultural e faz um mestrado em História da Arte porque queria ser professora, vontade que foi buscar à ‘veia pedagógica’ que diz ter, descrevendo-se até como um ‘rato de biblioteca’. E escreveu para a Le Cool, os Guias Com Vida e a Arqueolojista. Mas entretanto começou a viajar. Foi à China, à Índia e percebeu que gostava mais de viver nesses sítios que de viajar nesses sítios. E às tantas passava lá seis meses por ano, aproveitando (que inveja) para fugir ao inverno português.

A escrita de Mami Pereira, nas crónicas e nos livros, usa humor em barda, é irónica e satírica com abundância. A leveza e refinação estilísticas não nos devem enganar, atenção, porque na voz de Mami lá estão plasmados os ‘países que nos obrigam a tomar uma posição’. Viajar, diz, ‘confirmou os meus valores. Vemos o outro lado da História’. Da colonização, por exemplo. E o que muda numa pessoa estas viagens todas? ‘Percebi quem sou fora daqui, nós por cá temos a nossa personagem.’

A escolha da música clássica para tema do segundo livro é mais previsível. Afinal, conta Mami, ‘sou uma melómana. Cresci na Companhia Nacional de Bailado. A minha mãe era lá produtora. Cresci no São Carlos e no São Luís.’ E a escolha das músicas obedeceu ao melhor dos critérios: são as que gosta mais. Claro que A Tosse também é sobre música e os compositores e, na verdade, é um ótimo livro de divulgação musical. Quem se dedica preferencialmente a outras áreas artísticas e percebe pouco de música (eu, por exemplo), aprende imenso enquanto sorri com o estilo bem disposto.

Mami Pereira usa e abusa do Instagram. É uma espécie de Emily in Paris nacional (mas em inteligente, contrapõe Mami). Por lá passeia as suas ideias, as suas viagens e os seus projetos. As fotografias são sempre deliciosas, mas, garante, ‘eu estou nas legendas, não estou nas imagens’. Para passar a sua mensagem (a saber: ‘vivemos numa sociedade patriarcal que nos usa como objetos’), ‘deixo crescer o cabelo, ponho as pestanas postiças’ e fotografo-me, porque com uma imagem de uma mulher o algoritmo leva as palavras a muito mais gente.

‘O que tento fazer nas minhas redes é ser um farol dos meus ideais. Um farol faz sentido para os barcos. Quem for barco, aproxima-se, quem for trator, não. Não quero converter ninguém, quero encontrar a minha tribo.’ Sempre de modo apurado e prazenteiro, ou não se descrevesse Mami Pereira como uma ‘colecionadora de beleza’.

Pode seguir Mami Pereira no Instagram. Para encomendar A Tosse, visite este site. 20€, Edição de Autor.

Imagens de Mami Pereira. Texto de Maria João Marques.

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