O medo de andar sozinha na rua. E a necessidade do estado e das empresas agirem para parar a violência na rua.

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Foi em 2019, antes das eleições. Umas amigas do PSD convidaram-me para ir a um jantar comício em Oeiras, na Escola Náutica. Eu fui, cheguei já em cima da hora e tive de estacionar o carro longe. Depois do jantar tinha outro compromisso, pelo que saí mais cedo que quase toda a gente. Já estava escuro, havia um grupo pequeno bastante à minha frente e mais ninguém. O trânsito era escasso.

De repente cruzam-se comigo dois homens no passeio, junto à vedação da Escola. Um deles meteu-se à minha frente, obrigando-me a parar e não me deixando avançar, começando a falar comigo – como é que eu me chamava, por que estava ali, que era muito bonita. Eu gritei (para dar sinal ao grupo que estava mais à frente) ‘ei, o que quer?’. Ele continuou a impedir-me a passagem e a falar. Pareceu muito tempo. Até que o segundo homem começou a puxar o primeiro, gritando ‘Por que estás a assustar a senhora? Qual é o teu problema? Deixa de incomodar as pessoas.’ Com uns palavrões pelo meio dirigidos ao companheiro.

Eu aproveitei para avançar e a dupla também recomeçou a andar em sentido oposto, afastando-se de mim, com o segundo interveniente continuando a puxar e a ralhar com o que me interpelara. Corri para o grupo que estava à frente, gritei, pedindo que esperassem por mim, esperaram, levaram-me ao carro e regressei a Lisboa.

Correu tudo bem – quer dizer, fora o susto. Descontando o pânico que senti quando um homem desconhecido, acompanhado de outro, à noite numa rua da Linha, me impediu de passar. Foi pânico puro, porque podia ter acontecido tudo de mal. Não sei se a intenção da criatura que me impediu de avançar era só assustar-me por diversão. Se pensou assaltar-me. Se abusar sexualmente ou violar. Também não sei se o acompanhante ralhou e impediu algo pior por não gostar do que viu. Ou se por saber do grupo que estava mais à frente (com que também se tinham cruzado – mas não era uma mulher sozinha, pelo que nada fizeram) poderia intervir. Ou, ainda, por verem mais carros que o normal estacionados na zona e não quererem arriscar.

Esta foi uma situação que todas as mulheres já viveram, umas de forma mais feliz, outras menos. Eu tenho mais histórias para contar. É sempre problemático – porque viver com medo de sair à rua tem implicações de constrangimento na liberdade de movimento das mulheres (além de, em vários casos, na liberdade sexual e de autonomia sexual); e porque stress recorrente faz mal à saúde.

Em algumas ocasiões é trágico. Resulta em violações, agressões ou morte. Como aconteceu em Inglaterra a Sarah Everard, assassinada por um polícia enquanto andava sozinha na rua.

E sabem o que escandaliza quase tanto quanto estas ocorrências? É a falta de vontade de todos os agentes – governo, legisladores, empresas, tribunais – pararem com esta avalanche de violência que permanentemente assola e paira sobre as mulheres.

Há uns anos contactei vagamente com as pessoas de uma empresa que desenhara uma pulseira contra a violência sexual. As mulheres usavam-na e, se em perigo, partiam-na, libertando assim um gás entorpecedor que atordoaria o agressor e permitiria à vítima fugir. Não entendi o mecanismo pelo qual a mulher resistiria ao dito entorpecimento. Em todo o caso, era uma proposta. É-me inconcebível como não há mais ideias deste calibre vindas das empresas. Nem como os governos não atribuem subsídios para empresas desenvolverem produtos que promovam a segurança de mulheres.

Igualmente não percebo como não há nenhuma app desenvolvida e divulgada (incluindo, se preciso, com financiamento público) que permita mulheres sozinhas informarem a polícia, ou amigos, em tempo real, onde andam quando estão sozinhas à noite numa rua? E enviar sinal – através de um botão de pânico – se algo suceder. Até para permitir localizar outros smartphones que estejam na mesma área ao mesmo tempo, acaso seja necessário recolher testemunhos ou provas. Ou qualquer outro produto que contribua para dissuadir homens de violentar mulheres sozinhas na rua, dando-lhes conta que mais facilmente podem ser detetados ou punidos, que o risco cresceu.

Mas nada disto se faz. Quem manda no mercado – os homens – não tem noção da existência desta procura. Ou se têm noção não lhes interessa, porque julgam mais importante responder às necessidades dos consumidores/utilizadores masculinos. Nem valorizam os ganhos que daí poderiam vir. Não lhes interessa responder às necessidades do mercado feminino. Sucede com a violência sobre mulheres, como sucede com máquinas de tirar leite materno como, ainda, com falta de pesquisa de medicamentos e tratamentos para doenças e condições que afetem só mulheres. A falta de mulheres no topo das empresas também tem destas consequências.

Quem manda na política a cada momento, qualquer que seja o partido, pelo seu lado, relega as questões das mulheres para o fim da lista de prioridades. Falta de iluminação nas ruas, falta de videovigilância, leis que garantem impunidade ou penas curtas aos agressores, pouco policiamento noturno. E, já agora, queríamos garantia de polícias que não sejam assassinos nem agressores de mulheres – por cá vai-se testar, e bem, propensão para a extrema-direita dos candidatos às forças policiais; calhando seria bom testar as tendências misóginas. A falta de mulheres na política também tem destas consequências.

E, no entanto, direitos e liberdades fundamentais das mulheres – o direito à segurança e o direito à liberdade de movimentos – continuam a ser atropelados todos os dias. Sem ninguém querer saber.

No Reino Unido, o assassínio de Sarah Everard levou a protestos – além das usuais manifestações de pesar – incluindo uma inacreditável (tendo em conta o assassino polícia) brutalidade policial sobre as mulheres em protesto. Em Espanha, as primeiras sentenças do caso La Manada tiveram como respostas contestações de rua massivas. Por cá já houve uma manifestação aquando de sentenças iníquas. Em todo o caso, nada disto é suficiente. A solução passa por quem tem o poder político e quem tem o dinheiro – e, aparentemente, não querem saber.

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