E a culpa morreu solteira

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Faz esta semana, dia 4 de março, 20 anos da queda da ponte Hintze Ribeiro que ficou conhecida como a tragédia de Entre-os-Rios. Morreram naquela noite 59 pessoas. A maioria dos corpos não foi sequer possível resgatar ao rio para entregar às famílias enlutadas. Zero culpados.

Uma tragédia digna de um Estado falhado, em que as instituições públicas responsáveis pela manutenção e fiscalização das infraestruturas foram escandalosamente relapsas no cumprimento das suas funções.

Um Estado falhado, também, porque permitiu que no rio se instalasse uma indústria selvagem e que aí operasse sem fiscalização nem controlo. A indústria de extracção de areia, de acordo com o relatório dos técnicos do LNEC entregue em tribunal, foi a grande responsável pela queda da ponte e pela consequente tragédia. A extracção de areias contribuiu em 80 por cento para o rebaixamento do leito do rio que por sua vez descalçou os pilares da ponte. No decurso das investigações não foi feita prova que incriminasse os areeiros, mas a suspeita dos técnicos do LNEC nunca se dissipou.

Esta suspeita é mais uma nódoa no curriculum sujo da indústria extractiva que no século passado nos legou rios e terrenos contaminados e os que foram recuperados custaram milhões de euros aos contribuintes portugueses. Ainda não tínhamos curado as muitas cicatrizes de um passado de extrativismo e o novo século trazia ao conhecimento de todos a impunidade em que actua a indústria extractiva em Portugal. Mas nada mudou significativamente depois da tragédia, mais recentemente tivemos o caso de Borba para nos recordar disso mesmo.

Uma indústria que é directamente responsável por mortes, desgaste de infraestruturas públicas, que provocam quedas de pontes e aluimentos de estradas e, quando não, degrada de tal forma que deixa as vias em estado impróprio para efeitos de circulação. Uma indústria que vive suportada na complacência de um Estado que fecha os olhos aos impactos e continua indefinidamente a subsidiar com a reparação à custa dos contribuintes as infraestruturas degradadas pela actividade industrial.

Vinte anos depois da tragédia de Entre-os-Rios, a propósito do Plano de Recuperação e Resiliência, os representantes da indústria extractiva e recursos minerais escrevem uma carta aberta ao Primeiro Ministro. Reivindicam a dispensa dos estudos de impacto ambiental estratégico, mas mais grave ainda, que as autarquias e as comunidades não sejam escutadas, e que os pareceres dos municípios não sejam vinculativos aquando do licenciamento de novas explorações – almejam a manutenção da exclusividade na relação com o Estado Central, o tal Estado que nada fiscaliza e que deixou que estas tragédias acontecessem.

Portanto, as autarquias estão lá para os subsidiarem, para reparar as infraestruturas danificadas, as estradas, as pontes e viadutos e, muitas vezes, limparem o lixo que a industria extractiva deixa para trás.

E as pessoas, as comunidades? Essas existem para suportar os enormes impactos ambientais, principalmente a expensas da saúde e da sua qualidade de vida e quando não da sua própria existência. Mas não esqueçamos, também para os subsidiar com enormes desvalorizações imobiliárias que suportam relativamente aos bens que possuem. Esta indústria quer que as autarquias e as comunidades continuem a pagar e a calar.

Vão dizer aos investidores canadianos, americanos e australianos, a quem venderam o país como o Eldourado selvagem, que isto não é mais o faroeste a que estão habituados – e não é por adoçarem a indústria mineira com palavras como “green” que muitos portugueses (principalmente os mais jovens) vão tomar a cicuta por refresco.

As famílias de Castelo de Paiva não vão esquecer os que morreram naquela noite chuvosa, mas muitos de nós não vão esquecer as suspeitas de responsabilidade na tragédia do dia 4 de 2001, e nunca esclarecidas.

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