Ou por que não foi Adão que deu a maçã a Eva?
Nos filmes da minha infância, quando há uma mulher a parir, associo sempre a muito suor, agitação, gemidos até ao derradeiro grito, a que se segue o choro de uma criança. Há sempre panos imaculadamente alvos, um alguidar com água e muitas mulheres à volta. Sem racionalizar o assunto, para mim, parto, sempre foi coisa de mulheres. Os homens, do lado de fora, em amena cavaqueira. Uma ou outra vez, lá vemos uns laivos de sangue e rostos contritos. Na minha memória daquelas tardes de domingo de Joselito, Shirley Temple, Daniel Boone, “Uma casa na Pradaria”, Fred Aster e Ginger Roger, “O Fugitivo”, “1984”… entre tantos outros, não há imundice, não há crianças nem mães que morram nesse momento. Não há bebés que fiquem sem mães e mães que fiquem com leite sem ter a quem dar. Não há órfãos. O meu caminho foi-se fazendo, ou como canta o poeta, “a gente vai levando”.

Referi, no texto anterior, a minha decisão de ter filhos perante o meu primeiro embate com a descrição apocalítica de um parto humano. Mal sabia eu que, passados três anos, estaria numa maternidade, a passar mais de 24 horas para acompanhar uma amiga, cujo rebento tinha decidido sair antes do tempo previsto e estando o marido temporariamente no estrangeiro. Família longe. Fui a única corajosa, diziam-me, que se chegou à frente para ela não ficar sozinha (só agora ao refletir sobre estes assuntos percebi o motivo: lá chegarei). Não me contaram, nem vi em nenhum filme. O momento do nascimento não é aquele mar de rosas que nos pintaram. Parir não é um ato assético: há dor, há um corpo que se esfacela, há “carnes abertas”, (1) há gritos, urina, fezes, sangue, líquido amniótico, mecónio, há uma vagina que explode, há um último grito, quase estertor, para expulsar aquela bola de fogo que nos rechaça as vísceras parecendo levá-las com ela; há gordura e, eventualmente, morte de um ou ambos os atores.
Extenuadas, ouvimos gritos aterrorizados, podendo estes ser ou não antecedidos de umas palmadas; percebemos que há umas mãos a prendê-lo, percebemos que está assustado; sabemos que ele ganhou vida própria e tem que se desenvencilhar sozinho; obrigatoriamente tem que respirar por si próprio se quiser cá ficar.

Nós queremos que essa parte de nós não nos fuja. Como chimpanzés que fomos, ansiamos por lhe contar os dedos pois a ausência de um, sobretudo o polegar, é condição de não sobrevivência. Durante nove meses a fusão foi total e agora estamos cada um para seu lado; há um divórcio onde não nos reconhecemos. Nós desfazemo-nos de uma parte do nosso corpo; o bebé perde a sua parceira de conforto. Estamos ambos sozinhos; somos estranhos um ao outro.
Para outros partos fui “intimada”, até chegar a minha vez. Ao dar corpo a estas antigas inquietações sobre o ato e ao convocar estas memórias, percebi a minha ligação sanguínea ao momento: a minha bisavó materna era, contava a minha mãe, a “aparadeira” da cachopada naquela aldeia, Póvoa e Meadas, no fim do mundo do Nordeste Alentejano raiano. Muitas vezes a ouvi dizer-me de voz embargada e olhos marejados que a sua avó Joana Maria era madrinha de muitos dos cachopos, como um reconhecimento pela sobrevivência, pois tinha enterrado muitas mães e batizado, urgentemente, muitas crianças.
A natureza decidiu que dor, sujidade e morte estariam associados ao ato de dar à luz. Não o podemos branquear. Relembro que nessa ancestralidade, demasiadas mulheres morreram, mães ficaram sem filhas, crianças ficaram sem o cheiro e o som do ninho do aconchego, muitos filhos ficaram sem mãe e homens, naturalmente inábeis, com bebés nas mãos. É um momento de profunda solidão, único e irrepetível na vida de uma mulher e de um novo ser, vindo sabe-se lá de onde, seja macho ou fêmea. Entre o momento da fecundação, a gestação e o desmame são os únicos momentos da vida de uma mulher em que não há lugar ao conflito de género.
A sua singularidade é tal que éramos as deusas e o momento de parir é reverenciado e cheio de normas, ritos e interdições à sua volta pois do seu sucesso dependeria a sobrevivência da humanidade. De entre todos, o mais comum a muitas culturas é a incorporação enquanto ritual de iniciação; é a passagem para um novo estatuto social: o de mãe.
Se de um lado, em termos simbólicos, temos a revolução estatutária do outro há uma tríade de emoções que a conflituam: à mulher que passa a ser mãe junta-se o pavor da morte que comporta a sua, a da cria ou ambas sendo que quando se trata apenas da sua é a angústia do abandono da vida que tem dentro de si à sua própria sorte. Estamos sozinhas; sabemos que a morte paira sobre os nossos corpos como o sol que todos os dias adormece no horizonte onde, a todas as horas e a cada passo, fazemos, durante nove luas, como nos diz Laura Gutman, “o encontro com a própria sombra” (2)
Penso que é aqui que reside uma grande pulsão de amor-ódio entre mãe e cria. Para nós há a luta feroz entre o prazer de cumprir uma missão divina que é o de gerar uma vida e, em simultâneo, culpabilizá-la pela nossa morte prematura. Para o novo ser existe a culpabilização por ter sido expulso do paraíso. Qual jardim do Éden! O paraíso é a vida intrauterina, na qual tudo nos é dado sem qualquer pedido, sem qualquer esforço.
A raiva por ter sido expulsa, desse paraíso, de um modo tão violento é tanta, que a portadora desse ninho é culpabilizada por ambos os géneros. Esta raiva é muitas vezes acrescida da emoção do abandono por a morte estar muito presente, não só para o que acabou de ser expulso, como para todos os irmãos que acabaram de ficar órfãos.
A culpa é simbolizada pela maçã. (3) O fruto que quando cortado na vertical nos oferece a imagem de uma vulva, órgão de prazer mas também de nascimento e morte.
Numa cria fêmea a situação agrava-se porque, mais tarde ou mais cedo, iremos percecionar(4) que seremos nós, as filhas, que iremos vivenciar aquele momento de terror. Começará, então, a nascer a emoção acusatória de não termos sido poupadas a tal sofrimento. Em nós, mães, a raiva da impotência de ao parirmos uma filha sabermos que não conseguiremos parar este ciclo de dor e morte. Em sentido inverso, as crias machos acabam por ser protegidos porque nós conseguimos, óh bênção das bênçãos, parir um ser que não irá passar pelo mesmo.(5)
Não será por acaso que os aztekas consideravam que quando uma mãe morria de parto ia para junto do sol, exatamente como acontecia os guerreiros após uma batalha.(6)

Dizem-nos que ainda bem que não lembramos do parto. Será que não lembramos mesmo?
Do muito que tenho lido sobre stress pós-traumático em soldados adultos,(7) crianças-soldado, crianças abusadas em idade precoce, mulheres vítimas de violação, violência doméstica extrema com ou sem assassinato, mortes não consumados, suicídios não finalizados… não encontrei até à presente data (pode ter-me escapado) absolutamente nada sobre a hipótese de todo o ser humano nascer à partida com esta carga emocional inscrita no ADN.
Se até há bem pouco tempo se pensava que a vida intrauterina era apenas passar da junção de um óvulo com um espermatozoide e após a formação zigoto, mórula… até à organogénese, na qual a especialização celular começa, finalmente, a ter “contornos” dando origem a um corpo, hoje sabemos que esse corpo já contém memórias. Há estudos que nos mostram que a criança as traz. Só como exemplo: para além de reconhecer o som da batida do coração da mãe também consegue distingui-lo entre outros assim como sons do meio ambiente (músicas que a mãe ouvia ou sons muito intensos como no caso das crianças que nascem em contexto de ataques aéreos).
Os estudos sobre memórias genéticas apontam como possível causa para as fobias irracionais a inscrição no nosso ADN de emoções muito traumatizantes que depois são sublimadas noutras componentes. Tenho conhecimento, por exemplo, de quem tenha entrado em pânico por causa de um formigueiro; outra pessoa que tem pavor de granizo.
Poder-se-á achar inviável a análise neurológica dos efeitos da violência de um parto a um recém-nascido. Não sei. Creio que ninguém ainda se lembrou de o fazer. Se hoje ainda não existe a tecnologia que o permita fazer nada impede que ela venha a ser desenvolvida. Temos à nossa frente todo um mundo de possibilidades.
Tenho uma visão dinâmica em relação ao conhecimento científico. Relembro que os antigos na sua “limitação” linguística falavam-nos no terceiro olho e no olho de horus que hoje sabemos ser a glândula pineal. Relembro, igualmente, que se pensava que os animais eram seres irracionais, tendo sido a tecnologia (tal como as câmaras de trânsito, por exemplo) que nos fez ficar com um nó na garganta perante o apego de um cão quando o seu parceiro de rua é mortalmente atropelado ou perante a alegria de dois elefantes resgatados de um cativeiro, amigos de infância, aquando de um reencontro.
Concluo com várias perguntas:
– poderemos conceber que o paraíso perdido seja, simbolicamente, a vida intrauterina da qual fomos todos, sem exceção, violentamente expulsos?
– se é inequívoco que a maçã(8) simboliza o corpo de uma mulher será disparatado perguntar qual o motivo para lhe ser atribuída a carga de veneno quando é uma mulher a ofertar, esse fruto, como alimento, seja adulto ou criança?
– com mais veneno ou menos veneno qual o motivo para não ter sido Adão a dar a inocente maçã a Eva?
– se todos os estudos demonstram que os traumas físicos deixam sequelas às quais não temos acesso pela linguagem, poderá equiparar-se-lhe o parto?
– poderá residir no parto, enquanto porta para a expulsão do paraíso, a génese da misoginia e do machismo estrutural?
– por extensão ou generalização destes mecanismos poderá o ser humano alguma vez viver sem guerra como questionavam Freud e Einstein?(9)
Em jeito de síntese: não fomos nós, as mulheres, que decidimos que a multiplicação de seres humanos teria que ser assim mas toda a história da humanidade nos diz que temos que pagar um preço muito alto. O que me move é percecionar que no dia em que todos nós assumirmos que poderá estar no parto a génese da atribuição às mulheres de pessoa que nasce defeituosa, incapaz, e por extensão aos males do mundo a solução para as guerras e desequilíbrios será encontrada.
Até lá há todo um caminho de desconstrução das múltiplas estratégias “engendradas” que nos conduziram a aceitar a condição de submissas maravilhosamente descritas no poema de Chico Buarque da Holanda “As mulheres de Atenas”
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seu maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
(…)
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(1) Teresa Joaquim, Dar à luz, Ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal (…) Onde se desvenda o mundo em que os humanos se fazem e a que os homens são estrangeiros – o mundo da mulher, onde ela é a diferente, entre biologia e imaginário vivo.
(2) Laura Gutman, Maternidade “O resgate do relacionamento entre mães e filhos (…) ponto de partida para a vivência de inúmeros sentimentos e emoções (…) conflituantes” –
(4) Luís Graça, Representações sociais da Saúde, da doença e dos praticantes da Arte Médica nos provérbios da língua portuguesa – capítulo 6 onde é abordada as temáticas relacionadas com o parto, as parteiras, as comadres e os parteiros
(5) Relembro que estamos a falar de um tempo com mais de 10 000 anos. De uma vivência antes da agricultura e da pastorícia em que o corpo da mulher ainda não estava sujeito a interditos.
(6) Giving birth was one big battle
(7) Abram Kardiner,1941 com o livro “As Neuroses Traumáticas de Guerra” foi o primeiro autor que abordou este assunto.
(8) Em “Toten e Tabu” e “Moisés e o Monoteímo” Freud fala-nos dessa dimensão antropológica do trauma e do assassinato do pai. Na “matematização” do pensamento estou convicta que na neuropsicanálise estará o futuro para entendermos a origem da misoginia e do machismo estrutural. No dia em que entendermos isto a sua extensão ao racismo, à xenofobia e ao fascismo será dado, não tenho duvidas, um avanço civilizacional.
(9) Cartas entre Freud e Einsten
Muito pertinente e pleno de legitimas analogias. Porém, e em relação às questões finais: estou convencido (opinião minha) de que a expulsão do paraíso terreno se prende com a passagem do paleolítico para o neolítico (início da sedentarização, rudimentos da agricultura e florescimento de sociedades que resultaram no advento das civilizações. No entanto, não consigo discordar da tua hipótese.
Já quanto ao “facto” de ter sido Eva a dar a maçã a Adão… ❤ oh! Nem sei por onde começar. Temos de nos recordar que esse fruto tinha outro nome. Foi colhido da “árvore do conhecimento”. E o motivo da expulsão teve que ver com a existência de uma outra árvore que nos estava igualmente proibida: a do fruto da imortalidade. Deus não poderia permitir que provássemos de ambos. Pois a imortalidade combinada com o “conhecimento” levaria (mais cedo ou mais tarde) à omnisciência. Atributos divinos que nos colocariam em pé de igualdade com o nosso criador. O que é um facto é que – crescendo e multiplicando-nos – senão o homem em si, a humanidade atingiu o dom da ubiquidade. Outra coisa curiosa é que, apesar de ter plantado um arcanjo com espada flamejante guardando o acesso ao paraíso, não há memória (até à demanda do reino de Prestes João) de alguém ter querido voltar. Desde então, munidos do conhecimento, pouco mais fizemos do que procurar a chave da imortalidade. Mas que tem isto a ver com Eva??
Bem, os antropólogos (ou alguns, pelo menos) estão convencidos que foram as mulheres as responsáveis pelo advento e desenvolvimento da linguagem. Além de (quem mais?) responsáveis pela sua difusão (de mãe para filhos). E a linguagem é e foi a chave do “conhecimento”. Por outro, é transversal, a todas as culturas anciãs, a referência à “morte da avó cega”. O derradeiro esteio da mais longeva personagem, responsável pela transmissão de saberes e conhecimentos que, de outro modo, não teriam sido preservados. Do avô cego? Não resta culto ou memória.
Mas isto são apartes. E o teu texto é magnífico!
Pensamentos muito interessantes e necessários. Como é que a questao do parto nos enforma enquanto mulheres mesmo antes de passarmos pela experiência e de que forma este trauma profundo (Sigmund Freud fala!) é intergeracional e nos condiciona a existência enquano mulheres neste mundo. O nosso obrigada à autora!
O teu melhor texto até agora.
Isto é forte, é cruel e eu que não sou mãe biológica estou aqui a contorcer-me toda.
Deixo os dois momentos que mais me deixaram abismada:
“Numa cria fêmea a situação agrava-se porque, mais tarde ou mais cedo, iremos percecionar que seremos nós, as filhas, que iremos vivenciar aquele momento de terror. Começará, então, a nascer a emoção acusatória de não termos sido poupadas a tal sofrimento. Em nós, mães, a raiva da impotência de ao parirmos uma filha sabermos que não conseguiremos parar este ciclo de dor e morte. Em sentido inverso, as crias machos acabam por ser protegidos porque nós conseguimos, óh bênção das bênçãos, parir um ser que não irá passar pelo mesmo.”
Já li isto várias vezes.
“O que me move é percecionar que no dia em que todos nós assumirmos que poderá estar no parto a génese da atribuição às mulheres de pessoa que nasce defeituosa, incapaz, e por extensão aos males do mundo a solução para as guerras e desequilíbrios será encontrada.”
Fizeste-me pensar nisto a ponto de que a minha crença na sociedade me faz acreditar que se for assumido isto que dizes, as mulheres serão ainda mais odiadas.
Brilhante, Maria José. Obrigada.
Não sou do Nordeste Alentejano, mas sou do Nordeste brasileiro. Lugar de gente sofredora e batalhadora. Não sou mulher e jamais poderia descrever o parto desta perspectiva. Sou homem e pai. Assisti aos 3 partos de cada uma das minhas filhas. Parto natural. Se na minha condição de homem e pai e Nordestino puder falar algo sobre isto, com toda humildade, é para dizer que de facto há um paradoxo no parto. Há dor, esforço, trabalho, medo, cansaço. Mas também há um gozo, uma esperança, um sonho algures. Há mais que pudesse por em palavras. Poderia o preço do parto ser compartilhado entre homens e mulheres? Busquei fazê-lo, estando presente, ao menos. Encorajando, apoiando. Mas se pensarmos em um contexto ampliado, nosso belo quadro social nos revelaria de certo o oposto, o macho opressor, presente ou ausente, alheio aos berros, ao sangue, enfim, incapaz de reconhecer-se ali, naquele ato que um dia também foi uma experiência sua. Fomos todos paridos!
Walter Lippmann apresentou-nos, em 1922, o conceito de estereótipo, como se de um álbum de fotografias se tratasse e guardássemos na memória; o artigo que apresentas desmistifica o estereótipo, abre rasgos a novas imagens, que não sendo dotadas de vida própria, se afirmam como a vida que pretendem fazer acontecer. Dir-se-ia que são palavras a três dimensões, são tácteis, olfactivas; são ambivalentes, nesta fúria da criação da vida e da inevitabilidade da morte. Um artigo que se afirma como ponte entre o desejado e o aparente inatingível. Forte abraço, minha amiga!