Re-humanizar os índios e os cowboys

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Esta noite acordei três vezes. Das três o meu coração estava disparado e fiquei feliz por conhecer técnicas para me acalmar. A situação não é nova para mim. 

Há muitas coisas que despoletam estes acordares agitados. São flashbacks e os detonadores são variados. 

Ontem li várias coisas sobre a situação de catástrofe que estamos a  viver. Algumas foram relatos na primeira pessoa, outras foram desabafos de amigos. Chorei e fiquei muito aliviada por chorar. Aliviada porque chorar alivia e aliviada porque também quer dizer que não estou anestesiada. De vez em quando ainda sinto os meus sentimentos. Isso é sempre tranquilizante. O que mais me assusta é quando não sinto, porque sei que é quando entro no drama. 

Os dramas podem ter muitos formatos. Índios e cowboys, tragédias gregas, gangsters, melodramas e por aí fora. E são uma forma de desumanizar o outro. Nos dramas há sempre maus e bons, inocentes e culpados. Nos dramas é fácil perceber qual é o lado certo e mesmo havendo redenção do vilão, é sempre porque se arrepende e se junta ao “lado bom da força”. É um guião pré-definido pelo qual nos orientamos quando não temos orientação interior. Quando estamos confusos ou assustados demais para sentir. Quando sentimos coisas contraditórias que não conseguimos compatibilizar. 

Imagina um grupo de pessoas sentadas em círculo. Imagina duas pessoas nos lados opostos desse círculo. Se lhes pedirmos para descrever o ambiente sem alterar o seu campo de visão, as duas pessoas vão provavelmente descrever cenários completamente diferentes. Uma vê a porta e a outra vê janelas. Nenhuma delas tem o que a outra vê no seu campo de visão. As duas podem facilmente acreditar que estão certas e o outro está errado. Poderiam discutir ou até agredir-se as duas convictas da má fé da outra. E no entanto só com a visão das duas se pode ter uma noção da sala com um todo. Sem essa visão, o círculo corre o risco de se tornar em duas linhas opostas que lutam entre si. E com isso esgotam as energias das duas partes. 

Claro que podemos estar contra. Não é proibido. E também é fácil, é fácil desumanizar o outro sobretudo quando não o olhamos nos olhos, quando não sabemos a sua história. É mais complexo, mas muito mais interessante estar a favor. E no entanto muitas vezes não conseguimos. Sobretudo quando mais precisamos. 

Momentos de perigo fazem o nosso sistema nervoso preparar-se para a luta. Primeiro ele prepara-se para a luta e depois pergunta: “Onde é que eles estão?” E procura os inimigos. Os inimigos devem ser dominados ou destruidos. Para isso usamos as técnicas que conhecemos porque foram usadas connosco. Fazemos bullying: acusamos, ameaçamos, ridicularizamos, humilhamos. Nesse estado não somos capazes de ouvir. 

Nos últimos meses praticamente parei de escrever. Estava em modo luta e não queria acrescentar lume à fogueira. Fiz algumas pequenas exceções de que não me orgulho particularmente. Foram achas. Fiz bullying. Fui passivo-agressiva. Fui condescendente. E está bem, porque fui humana. Desde que não me orgulhe disso, e me lembre sempre que ganhar uma discussão não significa nada. Nem que o outro me compreendeu, nem que aprendeu alguma coisa, nem que “viu a luz” da minha verdade superior. Apenas significa que o que perdeu vai para a sua toca lamber as feridas e procura mais argumentos para voltar ao ataque. Significa também que a “minha tribo” vai apoiar-me e a “tribo do outro” o vai apoiar a ele. Cada vez mais raiva quer dizer cada vez mais energia de luta, quer dizer escalada de violência e polarização. Também quer dizer menos energia e negação em relação ao problema real com que estamos a lidar. 

Este processo mental existe para nos ajudar. Em tempos de escassez, se alguém tem que morrer, seja da outra tribo. É útil sabermos distinguir os “nossos” dos “estranhos”. Em tempos de ameaças globais não só é inútil como perigoso, no entanto aí está ele a funcionar a todo o gás. E só ficamos espantados porque sabemos tão pouco sobre nós próprios e sobre como funcionamos. Em termos emocionais ainda achamos que quando cai um raio quer dizer que os deuses estão zangados e temos que sacrificar alguém para os acalmar. 

As pessoas só mudam de opinião com três condições: sentirem-se ouvidas, respeitadas, seguras. Não é uma receita garantida, mas funciona bem com a maioria das pessoas. Mudar de opinião não quer dizer concluir que se está errado, ou negar o essencial da nossa visão, quer sobretudo dizer incluir o outro, re-humanizar os índios não implica desumanizar os cowboys..

O nosso instinto é reagir com agressão. E isso é humano. Mas depois do comportamento instintivo passamos a ter alguma pequena liberdade de escolha. Podemos escolher incluir o outro na nossa realidade. Virar o pescoço e olhar o que está fora do nosso campo de visão. Estupidamente difícil. Eu sei. Algumas vezes consigo, na maioria das vezes não. Estamos todos a aprender. Precisamos de ser ouvidos, respeitados  e de nos sentirmos seguros para o poder fazer. Criemos espaços onde isso é possível.

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