2020, vai e não voltes

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2020 tem qualidades cinematográficas. Começou despreocupadamente, com a população mundial alegre na sua vida sem desconfiar do que lhe cairia em cima. De seguida vieram os confinamentos, os dias trancados em casa, saídas com mil cuidados, teletrabalho, tele namoros, aulas em casa, séries de televisão consumidas compulsivamente, compras online como as definitivas ganhadoras deste ano, afastamento compulsivo de muitos dos que amamos. Depois o desanuviamento do verão, a esperança de, talvez, já nos termos livrado do pior, a praia, as esplanadas, regressar às lojas e fazer compras, jantar fora, enfim, viver.

Mas, qual plot twist de um argumentista sádico, depressa fomos afogados numa segunda vaga da covid ainda mais avassaladora, os números de casos e internamentos e mortes a aumentarem. Novamente restrições de encontros, saídas de casa, máscaras obrigatórias em todo o lado. Em alguns locais houve novo lockdown. Por cá, seguimos a estratégia sueca, exatamente quando a estratégia sueca provava ser errada, e conseguimos subir aos pódios europeus do número de mortes (por milhão de habitantes) nesta segunda vaga. Um orgulho nacional. Mas como os argumentistas cósmicos também preferem finais felizes – que comercialmente são mais atrativos -, lá nos dão uns sinais grandes de esperança para terminar o ano. Primeiro foi Donald Trump que perdeu as eleições presidenciais americanas, oferecendo um suspiro de alívio global ao mundo. Dias depois viram os resultados dos destes das vacinas contra a covid, e eram todos promissores. E, de saída, quando os créditos já estão a aparecer no écran, e a música final se faz ouvir, muitos países já começaram a administrar as primeiras vacinas. (Pronto, tratam-se dos países ricos do hemisfério norte, mas por algum lado tem de se começar.)

Tratou-se de um ano nefasto para as mulheres. Os empregos destruídos foram sobretudo nos setores onde as mulheres são maioritárias, pelo que o desemprego feminino cresceu consideravelmente mais que o masculino (que se alterou marginalmente). As mulheres, com os filhos em casa à conta das aulas à distância, tiveram uma sobrecarga ainda maior de tarefas de cuidado e domésticas. As carreiras das mulheres foram mais prejudicadas: estavam menos disponíveis para elas com o acréscimo do trabalho doméstico, produziram menos trabalho intelectual, tiveram paragens porque a maioria das pessoas que tiraram licença para apoio aos filhos foram as mães.

Pessoalmente o ano de 2020 foi muito duro, difícil, com uma carga de stress assinalável. E foi assim, mesmo não tendo eu perdido ninguém próximo para a covid, sem problemas de emprego, enfim, com algumas constrições financeiras na altura do confinamento da primavera mas a anos-luz de quem de facto foi economicamente afetado pela pandemia, ou perdeu o emprego, ou cessou a atividade e não teve ajudas estatais.

Sofri com a suspensão da vida social. Tive covid em setembro (com o meu filho mais velho), o que me pôs fechada em casa mais umas boas semanas e ainda me faz sentir cansada e sem energia mal fico constipada ou durmo pouco alguma noite. Durante o confinamento até vivi um bloqueio de escritora – enquanto durou, apesar da abundância de tempo, não consegui adiantar uma linha do meu livro. (Bom, nenhum autor que se preze vive sem um ou dois bloqueios. Bom sinal, portanto.)

Porém, como em todas as situações-limite, há lições preciosas a tirar. E estes momentos-charneira são sempre alturas em que algo se quebra, a mudança se impõe, as realidades mais sólidas (mas só estas) resistem e fortalecem-se. Foi um ano que permitiu a introspeção, clarificou (ainda mais) caminhos, reforçou o que quero e o que não tolero. Sobretudo foi um ano ótimo para tirar da minha vida pessoas, obrigações, ligações que já estavam caducas. Deitei fora imensa coisa (muitas delas imateriais). Passei muito tempo com os meus filhos, e vimos filmes de Hitchcock, de Frank Capra e boas séries televisivas. Comprei uma nova casa e portanto tenho para fazer algo que adoro: reabilitar imóveis antigos. Fui alvo de cuidados e atenções constantes quando estava fechada em casa com covid pelas pessoas que gostam de mim, em alguns casos surpreendentes e inesperados.

No século XX, os loucos anos 20 sucederam-se à Primeira Grande Guerra e à gripe pneumónica. Foram anos de excessos, estilos musicais novos apareceram, alguns meio escandalosos como o jazz, sair à noite para dançar foi um hábito que se vulgarizou, as bainhas dos vestidos das mulheres encurtaram-se e subiram em alguns casos acima do joelho, usavam-se drogas, cigarrilhas, maquilhagens carregadas As roupas das mulheres abandonaram os espartilhos, libertaram-lhes os movimentos, simplificaram-se. Acompanhando as novas liberdades femininas, alcançadas com o direito de voto que vários países ocidentais reconheceram depois da guerra.

Depois da privação, veio a alegria e a exuberância. O mundo social estratificado de antes da guerra desabou – era das tais realidades caducas que não valia a pena manter. Acredito que temos novamente necessidade de uns loucos anos 20, para nos curar da pandemia (mesmo aos que não foram infetados) e das crises económicas que o século XXI tem tido em sucessão vertiginosa. Enterrando o que fez parte de um mundo e um ano lúgubre, e inventando novas formas de felicidade. Eliminando ainda mais injustiças, recompensando melhor os trabalhadores dos setores que nunca puderam parar, desmantelando os espartilhos que impedem a inclusão. Com vidas pessoais mais limpas do que é pernicioso e mantendo o que foi valioso este ano.

Um bom augúrio para tudo isto? As lideranças políticas de mulheres durante a pandemia, que se notabilizaram pela qualidade, de Ursula von der Leyen a Merkel e a Jacinda Ardern. (Ao contrário dos governantes da masculinidade tóxica, que tiveram as piores prestações.) Tivemos muita sorte em ter líderes mulheres destas, e sem dúvida marcam o futuro do poder político.

Um feliz 2021!

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