O Bisavô, de Maria João Lopo de Carvalho

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Não sei se alguma vez vos contei, mas tenho uma forte pancada por livros de sagas familiares. Gosto muito de livros de memórias escritos pelos próprios proprietários das memórias. E, não raro, quem o faz estende essas memórias até umas gerações antes da sua. Faz todo o sentido: afinal aquilo que somos vem muito de como e com quem nos socializamos, pelo que a personalidade e a vida dos pais, dos avós, dos bisavós, às vezes dos trisavós (quando persistem na tradição oral familiar) dá pistas sobre o próprio autor e protagonista das memórias. Lembro-me do Raízes, de Amin Maalouf. Ou de Cisnes Selvagens, de Jung Chang.

O Bisavô, da conhecida e reconhecida escritora Maria João Lopo de Carvalho, cuja personagem cimeira é Manoel Caroça, seu bisavô, não é exatamente este tipo de livro. Desde logo porque é ficcionado e com todas as liberdades criativas. Em todo o caso, supre a necessidade nacional destas sagas familiares. Porque, ainda que ficcionado, é um exercício para contar a história da família da autora e de preservar a memória. Há verdade no livro. Como bem sabe quem já se dedicou ao estudo da literatura de estilo lifewriting, muitas vezes a verdade, naquele sentido da essência das pessoas e das coisas, é melhor veiculada com liberdades criativas e ficcionadas que com relatos jornalísticos secos e meramente factuais.

O Bisavô é, então, a biografia ficcionada dos bisavós paternos de Maria João Lopo de Carvalho e das suas famílias – pais, irmãos, cunhados, filhos. Claro que estão lá as relações entre as personagens – o desinteresse de Manoel Caroça pela sua mulher, a bisavó Jenny D’Abreu, as relações entre as irmãs e cunhadas da família Patrício, as amizades dos primos Manoel Caroça e Agnelo Patrício,…

No entanto, o mais interessante do livro é acompanhar e evolução social dos Caroça e Patrício. A transição dos membros destas famílias, endinheiradas e de prestígio, da Guarda para Lisboa, onde terminam fazendo parte da alta-sociedade lisboeta depois da Primeira Guerra Mundial. Os casamentos socialmente vantajosos que fazem as irmãs e irmãos Patrício. A irmã Lúzia, por exemplo, casou com Francisco Pinto Balsemão, comerciante e industrial rico da Guarda e antecessor do Francisco Pinto Balsemão que todos conhecemos hoje.

As divisões da família entre republicanos (Agnelo e Francisco Balsemão, ambos entusiastas) e monárquicos. Entre as irmãs feministas e apoiantes das sufragistas – e de Carolina Beatriz Ângelo, outra filha da Guarda e que agita as opiniões das personagens d’O Bisavô pela sua escolha de estudar para médica, casar pelo civil em vez de pela Igreja, querer votar – e as irmãs conservadoras que recusam tudo isto.

É também uma história ligada à pesquisa e à cura da tuberculose em Portugal. O outro bisavô paterno da autora, Lopo José de Carvalho, casado com uma das irmãs Patrício, Polina, é o médico que constrói o Sanatório da Guarda para curar, com a altitude e o ar das montanhas, os tísicos portugueses. Muito próximo do médico Sousa Martins, outro grande estudioso da tubeculose, cujo suicídio com morfina, no fim da vida, também se conta em O Bisavô.

Esta é outra peculiaridade interessante da obra: desfilam nela personagens extra-familiares que fazem parte da história portuguesa. O industrial Alfredo da Silva, Afonso Costa, a Rainha Dona Amélia (sempre a mais alta em todas as fotografias que constam no livro, que a estatura dos portugueses era reduzida). Tantos outros. Também nos passeia por locais emblemáticos do país, seja a Quinta da Alorna, em Almeirim, ou o Palacete Ribeiro da Cunha (atualmente o Embaixada no Princípe Real, em Lisboa), ambos comprados por Manoel Caroça.

O Bisavô corre por mais de setecentas páginas (mais notas e bibliografia), pelo que muito mais haveria que iluminar sobre a obra. Apesar da vastidão é ligeira, legível e uma boa escolha para leitura ou presente. E termina – e é tão curioso como as realidades se encaixam, tendo em conta que vivemos atualmente, pela covid, a crise económica mais catastrófica de que todos, mais ou menos novos, temos memória; e que um livro deste volume, de páginas e de pesquisa, começou a ser construído há anos – com o crash da bolsa de Nova Iorque em 1929. Talvez este fim literário de 1929 traga alguma esperança para o fim 2020: as economias, tal como as famílias, resistem.

O Bisavô, A saga de três gerações de uma poderosa família portuguesa, de Maria João Lopo de Carvalho. Oficina do Livro.

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