Aprender para sairmos da cultura da violência sobre mulheres

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No livro Down and Out in Paris and London, de George Orwell (tem tradução em português da editora Relógio D´Água), logo nas primeiras páginas o autor conta de uns tempos em que viveu nas zonas pobres (daí a expressão ‘down and out’) de Paris. Tinha um casal de vizinhos muito apaixonado. Ela traía-o, ele batia-lhe (era assim que Orwell mostrava a relação; mas, se calhar, a ordem real era: ele batia-lhe, ela traía-o). E, nos tempos seguintes a cada sova do marido à mulher, era quando ela mais apaixonada por ele estava, e quando o casal vivia mais feliz. Quando ele parou de a sovar foi quando o casamento ficou condenado.

A realidade do casal pode ter sido inteiramente diferente, mas foi assim que Orwell a percebeu e contou. E o que me interessa é precisamente a narrativa sobre violência doméstica, sobre o que significa, e as consequências de um marido bater na mulher e a mulher apanhar constantemente. E esta história de Orwell é emblemática da romantização e da relativização – se não mesmo da apologia – da violência doméstica.

Então reza assim. Por um lado, a violência dos homens ocorre por amor, é mesmo um sintoma de paixão descontrolada. Donde, no fundo, é algo de bom. O homem que bate na mulher tem, no máximo, uns problemas de descontrolo. Mas quem se controla quando está apaixonado? Por outro lado, as mulheres gostam de apanhar dos maridos. Por duas razões. Uma, porque as mulheres deliram com os homens mau carácter e adoram os homens que as tratam mal. Duas, porque, lá está, serem espancadas acontece pela tal paixão incontrolável.

Isto é tudo uma treta sem tamanho, mas na verdade é ainda esta a mensagem cultural que passa sobre a violência doméstica. Ainda lemos nas notícias que os homens matam e batem ‘por ciúmes’. O desgosto com o abandono da mulher ou namorada é o que leva as boas almas dos maridos ou namorados a matar. Amam tanto que matam – é essa a mensagem. Vem desde Otelo, e não mudámos nada desde os tempos de Shakespeare.

Estas mensagens inserem-se noutras mais amplas, que não contemplam só o caso mais extremo da violência doméstica. Os homens são socializados para se convencerem que tudo lhes é permitido nas relações, que as mulheres gostam de ser desconsideradas e maltratadas. A facilidade com que os homens adotam comportamentos agressores – mesmo que nunca dêem um estalo – é aterradora. As mulheres são socializadas para aceitarem toda a bullshit dos homens, sejam traições, sopapos, maus tratos emocionais e psicológicos, ou práticas sexuais agressivas.

Há dois dias foi o Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Falou-se muito de violência doméstica nesse dia, vai voltar-se a falar quando mais mulheres morrerem (ontem morreram mais duas), e nos intervalos o tema continua sem qualquer resposta de fundo que não seja um paliativo. Os tribunais continuam anquilosados – a história da vítima de violência doméstica que foi presa preventivamente (quando nem os homens agressores têm prisão preventiva, e geralmente nem depois da sentença) é intragável num país decente -, a polícia continua a não levar a sério as queixas, são as vítimas que continuam a ter de sair das suas casas, não há proteção efetiva depois de apresentarem queixa.

Não se falou de violência sexual – que é um tema tão escabroso como a violência doméstica. Não se falou de violência sobre mulheres nas redes sociais. Não se falou de outro tipo de violência: a pobreza, que recai mais sobre mulheres.

E não se falou da educação que é preciso fazer para este tema da violência sobre mulheres. Aos rapazes tem de ser ensinado o respeito pelo corpo das mulheres. Tem de ser ensinado que as mulheres são seres dotados de vontade própria, auto determinam o que se passa e o que fazem com o seu corpo, não são objetos propriedade de outros. Tem de ser ensinado o que é o consentimento. Os homens têm frequentemente muitos problemas com o consentimento, e não só em matérias sexuais. A desconsideração que fazem dos parâmetros que as mulheres estabelecem para as suas vidas, como se coubesse aos homens desenhar a estrutura onde as mulheres têm a obrigação de se acomodar, é assustadora.

Às raparigas tem de ser ensinado que maus tratos nunca são amor. Que frieza e distância emocionais nunca são amor. Que provocar deliberadamente dor durante o sexo não é amor. Que desconsiderar o prazer sexual de uma mulher nunca é amor. Que controlo e ciúmes excessivos nunca são amor. Que humilhações nunca são amor. Que gaslighting e ataques à auto estima e dignidade do outro nunca são amor. Que provocar o isolamento do outro nunca é amor. Que bater nunca é amor. Que deslealdade e desrespeito nunca são amor.

Tudo isto é sintoma de desafeto e de falta de amor. Por vezes é consequência de ódio. Orwell não tinha razão. Temos de escaqueirar estas mensagens culturais apologistas de violência sobre mulheres.

Claro que muitos e muitas já são educadas desta forma saudável. No entanto, pelas estatísticas sobre violência no namoro e violência doméstica, claramente é uma porção da população insuficiente. Pelo que é importante veicular estas aprendizagens – e as escolas são locais privilegiados, sobretudo a tal disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Aos rapazes, que os corpos e a vontade sobre si próprias das mulheres são linhas que não se podem quebrar. E, às raparigas, que têm valor. Donde, merecem ser amadas e bem tratadas. E, quando não são, o que há a fazer é sair da relação, não tolerar desculpas para os atos corrosivos da dignidade pelo homem ou rapaz, nem inventar um inexistente amor que leva aos comportamentos abusadores. Porque, não saindo, enrolam-se numa espiral de maus tratos psicológicos e emocionais (na melhor alternativa) ou de abusos físicos (na pior).

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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