Assassinato de Valentina e a tese ‘a culpa é da mulher’

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Uma das características mais gritantes deste machismo estrutural que nos engole no mundo é a benevolência com que trata os homens, versus a exigência maldosa com que lida com as mulheres. Os homens têm direito a errar grosseiramente sem serem condenados sem apelo nem agravo; as mulheres são julgadas e dadas como as piores criaturas que pisaram o planeta Terra na sequência de qualquer lapso menor. Os homens são seres bondosos, descomplicados, generosos; já as mulheres são ruins, vingativas, cheias de esquemas e de manipulações. É esta a visão tradicional que a mores machista pretende manter.

Vê-se em todo o lado. Na exigência insana que oferece às mulheres que têm uma qualquer profissão com visibilidade e poder, versus a bonomia com que se encaram os desempenhos dos homens. No nível de ódio e de bílis com que se responde nos media e nas redes às mulheres, atacando-se tudo o que elas SÃO, enquanto aos homens se tem respeito da sua essência e somente se embirra com o que eles PENSAM. A forma madrasta como os subordinados avaliam as líderes mulheres, versus a complacência que estendem aos líderes homens. Etc. Etc. Etc.

Donde, não é surpreendente que um homem acusado de matar a filha – a Valentina, todos nos lembramos com horror deste assassínio que ocorreu depois de horas de tortura, queimaduras, pancadas e asfixia – em co-autoria com a mulher, madrasta de Valentina, tente como defesa alegar que afinal a madrasta foi quem matou a criança. Presumivelmente, segundo esta nova teoria, o pai – pessoa boa e pai amantíssimo, com o azar de ter sido desviado pela aleivosa mulher, que lhe ‘enfiou o diabo dentro dele’ – somente permitiu que a madrasta torturasse a sua filha com queimaduras e pancadas durante horas e, de seguida, depois de a ‘tentar salvar’ não chamou nenhuma ambulância para salvar a filha que evidentemente precisava de cuidados de saúde e de tratamentos. Mesmo que fosse verdade, que se faz a um pai que deixa uma madrasta torturar a sua filha sem a socorrer (sendo que fisicamente era perfeitamente capaz disso, uma vez que os homens têm normalmente maior força física que as mulheres) e, depois, não lhe dá os cuidados urgentes e a deixa morrer?

Mas é esta história que o pai de Valentina agora conta. Tentando passar as culpas para a sua mulher, madrasta de Valentina. Esperando que a tradicional benevolência com os homens (que no fundo têm todos corações grandes e simples, não é?) e a ainda mais tradicional visão das mulheres como maldosas e manipuladoras sejam suficientes para passar a pena maior para a sua mulher.

Atenção, não tenho dúvida nenhuma que a madrasta de Valentina é uma criminosa. Também não socorreu a criança dos maus tratos que o marido lhe aplicava, também não ligou para o 112 e aparentemente instigou o pai a torturar a criança, alegando que Valentina estava a ser sexualmente abusada e não queria contar. Merece inteiramente uma longa pena de prisão. Este texto não é uma defesa desta mulher.

É um texto sobre o mundo onde às mulheres é atribuída culpa por todos os males, incluindo os gerados por terceiros, e aos homens são perdoados mesmo os grandes males que causam. Incluindo nos tribunais. Todos nos recordamos das sentenças iníquas e indecorosas culpando uma mulher pela agressão com uma moca com pregos que sofreu às mãos do ex-marido e do ex-amante, ou a rapariga violada por dois homens numa discoteca que, afinal, foi dada nos acórdãos dos tribunais portugueses como tendo praticado ‘sedução mútua’. Lembremos mais um caso de assassinato cometido por outro casal (desta vez de amantes), o de Luís Grilo: a sua mulher foi condenada a 25 anos de prisão, enquanto o seu amante, que com ela cometeu o crime, foi absolvido. Só posteriormente o tribunal da Relação o condenou.

Não espanta, portanto, que um assassino tente a estratégia ‘ela é que me desviou’, ‘ela é que matou’, ‘ela enfiou-me o diabo e eu não chamei a ambulância’. Não espanta, porque tem boas hipóteses de ser bem sucedida.

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