Foi um dos muitos livros que me ofereceu, imensos, tantos. Todos com amor. Com um amor que eu nem sempre pressenti. Pai, este texto que escrevo agora para os meus filhos foi um dia para ti.
Um dia, mais tarde, quando as forças deles não estiverem já embebidas pelas minhas, o que ora escrevo fará, talvez, sentido.
Lutei muito para me fazer ver, para me mostrar – a medo, aterrorizada.
Sempre a tentar cortar com as barreiras de quem não sou e nem nunca fui.
Numa luta cansada, solitária e egoísta. Algo desenfreada. Muito sentida.
Mascarei-me. Máscaras que servem a ninguém mais do que a mim. E que se entranham. Que custam a arrancar. Fundam-se em mentiras disfarçadas de sonhos que não são os meus.
Cresci rodeada de muito amor, e de muito medo. Em proporção igual.
Aprendi a seguir, copiar, transladar.
A sonhar sonhos velhos. Já vividos. Possíveis. Com felicidade mínima garantida.
Nunca me viram. Nua. À minha barriga. Ao meu coração. Às minhas costas, pernas, rabo, coxas. Entranhas, desentranhas. Limpa, suja. Crua, carne, sangue! Alma! Ser!
Eu. Como sou. Como sempre fui. Aquela menina pequenina, tímida e feliz que gostava muito de comer e que tinha a cabeça cheia de sonhos e de livros e que guardava as ‘folhinhas queridas’ numa caixinha pequenina de metal e que queria ser professora.
Essa menina ainda vive cá dentro. Via-a no outro dia, num cantinho, encolhida, à espera. Esperava pela paz. Que eu deixasse de lutar para a poder ver. Para me ver a mim.
Quando a guerra contra nós próprios nos dá tréguas, vejo-me a mim e também a vós meus filhos.
Vejo as pessoas que são. Tão diferentes de mim. Tão cheios. Tão únicos. Tão vós.
Com orgulho escondido na felicidade – de escolher vestir para a escola uma meia de cada cor.
Com traquinice disfarçada num sorriso – quando se rouba o telemóvel do pai para jogar aquele jogo escondido no vão das escadas.
Com prazer na gulodice – de andar a surrupiar os torrões de açúcar do açucareiro e a lamber a tampa do jarro do doce.
Com teimosia certa – em fazer a nossa própria moda, desconformada, desalinhada.
Com medo escondido na força – quando me dizem “eu sou o dono de mim próprio”.
Não vos prometo nada.
Não sei onde vamos estar amanhã (sequer se vamos cá estar). Se teremos roupa para nos agasalhar. Se casa, para nos abrigar. Mas se ainda cá estivermos estaremos todos juntos! Todos com uma meia de cada cor se isso nos trouxer felicidade.
Vou tentar com muita muita força que o medo que sinto de que caiam, se magoem, se percam, adoeçam, nunca seja a barreira que impeça a liberdade de serem quem são!.
Vou-me forçar a apagar o erro que seria corrigir esses tão mágicos dias feitos de uma meia de cada cor.
E vou juntar ainda mais meias, mais coloridas, meias de todas as cores!
E vou esconder o açucareiro num sítio ainda mais óbvio.
E vou criar silêncios alegres.
Vou ouvir.
Vou sorrir.
Vou sonhar os vossos sonhos convosco.
A vós meus filhos.
Que todos os sonhos que tenham sejam sonhos ainda não vividos, não sonhados.
Sonhos que estão onde estão os dragões, e os ladrões, e os papões. E todos os ‘ões’ que por vezes não vos deixam dormir.
Aí. Aí mesmo.
Mas sabem que mais. Vamos juntos! Lá onde estão os vossos sonhos. E sei que vou ter muitos medos – ainda mais do que vocês. Mas não faz mal. São só medos. Não são reais.
A vocês, meus filhos, com todo o meu amor.
E a mim. Que sou muitas coisas. Mas também sou escritora.
(Obrigada Mário Dionísio, também este será, talvez, lido mais tarde.)