Não há muito para comentar sobre este caso. A realidade é tão vívida e tão horripilante que não é necessário acrescentar.
No Brasil, no estado de Pernambuco, uma menina de 10 anos, violada pelo tio repetidamente desde que tinha seis anos, engravidou. Segundo a lei brasileira – e qualquer decência humana – a criança podia abortar. Depressa se gerou uma onda de protestos pela direita ultra conservadora bolsonarista contra este aborto. A criança teve de mudar de hospital e foi no segundo hospital que lhe fizeram o aborto. Isto tudo no meio de gritarias de ódio folclóricas pela direita bolsonarista brasileira, com vigílias em frente ao hospital, ameaças e insultos à equipa médica e à criança violada.
Os piores momentos vieram, um, de uma tal Sara Winter, terrorista de extrema-direita, que revelou o nome da criança violada, o nome do médico que iria fazer o aborto e o hospital onde estavam ambos. Isso, uma criatura peçonhenta divulgou publicamente o nome de uma menina que foi violada durante quatro anos. O outro, de uma alegada católica, também bolsonarista, com uma publicação no facebook onde afirmava desconfiar que a menina de dez anos teria provocado a violação, e onde oferecia palavras duras a absolutamente toda a gente – a criança abusada, os pais, os médicos – menos o violador. Para esse não teve nenhumas críticas, nem leves.
(Nota: por cá o twitter da direita mais conservadora também e pronunciou condenando o aborto.)
Custa a crer que existem espécimes humanos como estes, não é? Mas existem, e são pessoas que se dizem católicas, e se calhar vão à missa. De facto, a criatura que culpou a menina de 10 anos violada pela violação teve direito a post desculpabilizador vindo da sua paróquia – e dando também, claro, o maior crime como o aborto de uma criança violada de 10 anos.
O comportamento da Igreja brasileira é outro nojo sem fim. O bispo de Recife veio queixar-se que o aborto causou a morte de uma menina de 5 meses. O bispo presidente da conferência nacional de bispos brasileiros considerou que o aborto realizado é ‘crime hediondo’. Ambos só lateralmente se ocuparam da violação continuada de uma criança. Segundo o presidente da CNBB, ‘a violência sexual é terrível, mas…’
Noto que não é a primeira vez que no Brasil há repúdio direcionado a meninas que abortam na sequência de violações. Um caso (há mais outros) de 2009 também teve a Igreja a repudiar um aborto feito numa menina de 9 anos depois de violada e engravidada pelo padrasto. Foi a tal ponto que a equipa médica e a mãe desta menina – que lhe salvaram literalmente a vida – foram excomungados pelo arcebispo de Recife e Olinda. Segundo esta pessoa que é bispo, um aborto nesta condições foi mais grave que a violação da criança de nove anos.
Bom, como escrevi inicialmente, não há muito a comentar. Há criaturas – a quem não consigo chamar de pessoas – que claramente convivem sem grandes problemas com a violência sexual, incluindo a feita sobre crianças. (Desde logo porque a Igreja tem sido uma grande praticante de violência sexual, incluindo sobre crianças.) E estas mesmas criaturas – que alegam hipocritamente defender a vida – mostram que a vida das mulheres e das meninas, para eles e elas, não vale absolutamente nada. Uma menina de 10 anos, ou de 9, não está evidentemente fisicamente preparada para uma gravidez. Na adolescência, uma gravidez continua a ser um maior risco, pelo corpo ainda em formação. Donde, as ditas criaturas não se importavam de literalmente rebentar estas crianças para as obrigar a manter a gravidez.
E há a questão da violação. Uma mulher que é violada desenvolve uma doença incapacitante que dá pelo nome de perturbação de stress pós-traumático. É uma doença que pode levar ao suicídio. Precisa de tratamento. E um dos elementos essenciais para qualquer vítima de um evento traumático começar o seu processo de cura é sentir que reganhou o controlo sobre a sua vida (e o seu corpo, neste caso) e que está em segurança e afastada do seu agressor. Como é evidente, uma gravidez resultante de uma violação não só impede estes pressupostos para o início da cura como, ao contrário, é a continuação e a presença da violação. É uma agravante de trauma para uma mulher violada.
Alguém que desumaniza as mulheres a ponto de defender que a sua saúde é tão irrelevante que devem ser obrigadas a manter uma gravidez resultante de uma violação – é, temos de dizer, um monstro. Mais uma vez: de modo nenhum defendem a vida, a vida da mulher violada vale zero para estes monstros.
Portanto, é com monstros que estamos a lidar. Monstros que vêem as mulheres e as meninas como animais parideiros descartáveis. E estes monstros são católicos ultra conservadores, não esquecer. E que têm uma ideologia: a direita populista bolsonarista, trumpista (são igualmente fanáticos quando o assunto envolve aborto), nacionalista, alt right que endeusam o mercado e o obscurantismo religioso.
Do lado de cá do Atlântico são iguais, não esqueçamos.