O estertor de Trump

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Trump fez um mega comício em Tulsa, no estado de Oklahoma, no fim de semana passado. Os mega comícios são uma imagem de marca de Trump. Enche os recintos gigantescos com os seus apoiantes e eleitores indefectíveis, faz de entretainer, mente abundantemente, cria divisões e fissuras insanáveis na sociedade americana com as suas tiradas racistas e machistas e os insultos aos opositores. São espetáculos de rebolar na lama que um país que venera o wrestling inevitavelmente devora alegremente.

No entanto este comício, num recinto onde cabiam mais de 19.000 pessoas, só conseguiu juntar 6.200 espécimes trumpistas. As cadeiras vazias da arena de Tulsa foram a marca da noite. O espaço que estava preparado no exterior – para acolher os apoiantes de Trump que não caberiam nos 19.000 lugares interiores e onde Trump e o seu vice-presidente contavam também falar par agitar as multidões – foi desmontado sem ter uso.

Houve uma história linda dos adolescentes do tiktok e do mundo do twitter à volta do K-Pop (essa mesma, a música pop coreana) que às centenas de milhar reservaram bilhetes para o comício de Trump que não tencionavam utilizar, inflacionando assim as expetativas da campanha quanto ao número de participantes e provocando lugares vazios. Foi uma partida deliciosa que nos trouxe esperança sobre a decência ainda existente nos Estados Unidos, sobretudo nas gerações mais novas. Mas esta trollagem não explica a falta de adesão dos eleitores de Trump – que, afinal, uma vez que os bilhetes não tinham lugares marcados nem limite de participantes, poderiam ter acorrido sem problemas ao comício.

O que se passou foi que os eleitores de Trump, antes devoradores dos seus comícios de lama, decidiram não participar.

O que faz pensar que há uma rutura entre Trump e o seu eleitorado. Esperemos, para bem do país e do mundo, que impossível de colar. Trump caiu na armadilha dos líderes narcisistas, que não entendem que as vidas e as decisões das outras pessoas são sobre os interesses dessas próprias outras pessoas, não sobre os líderes. Os eleitores procuram aquilo que, e quem, defende os seus interesses, não são loucos que tomam para si os objetivos de vida do dito líder. Pelo que o líder vale e é seguido tanto quanto entrega aos seguidores/eleitores o que estes esperam em defesa do seu modo de vida, rendimentos, valores. Não se segue o líder para lhe proporcionar, altruísta  e gratuitamente, a sua estratégia de poder pessoal.

Os eleitores de Trump esperam, ou esperavam, dele a defesa de uma certa ideia de América. Uma América da hierarquia das raças e dos sexos, das famílias patriarcais de mães que não trabalham e de filhas que fazem juramentos de virgindade até ao casamento, do conservadorismo social que não quer conviver com gays e com feministas, que vê o progressismo urbano como degenerado, sem veleidades intelectuais, de uma classe média baixa ou baixa branca ressentida com o seu estatuto (sobretudo face a minorias com crescente sucesso), que nunca saíram dos Estados Unidos, religiosa num nível ignorante que ainda defende o criacionismo e se persigna quando ouve falar de Darwin e da evolução das espécies. Uma América zangada com as populações mais modernas e progressistas e com contacto com o resto do mundo das costas Leste (a norte) e Oeste. Uma América que teima em ficar fixa numa era dourada (imaginária, como sempre são as eras douradas) de há algumas décadas.

Trump era um ótimo veículo para a manutenção dessa América que os seus eleitores desejavam. Uma espécie de validação psicológica do seu modo de vida, de resto sob constante gozo e escárnio dos progressistas a quem era necessário dar uma lição.

No entanto Trump, o narcisista-chefe, parece não ter entendido que para os eleitores era somente um instrumento em defesa do que os eleitores pediam. Que para os eleitores contam os interesses dos próprios eleitores, não os objetivos políticos de Trump.

Porém Trump, convencido da sua própria genialidade e do amor que os eleitores lhe têm que supera até o apego aos seus interesses, supôs que os seus eleitores: 1) são tolos a ponto de confiarem nas lengalengas falsas de Trump sobre a pouca perigosidade do coronavírus e a desnecessidade de distanciamento social, máscaras e por aí em diante; e 2) estavam dispostos a arriscar a sua saúde para irem idolatrar Trump e darem-lhe uma vitória política. A organização do comício pedia inclusivamente que se assinasse um termo isentando de responsabilidade a campanha de Trump caso saíssem do comício contagiados com covid. Não tinham qualquer cuidado anti contágio: o uso de máscaras não era obrigatório nem sequer recomendado; os lugares pretendia-se que ficassem empacotados. Uma completa desconsideração pela saúde dos que iriam participar – donde, completa desconsideração pelos eleitores.

E Trump julgava que os seus eleitores iriam recompensar esta absoluta desconsideração que lhes fazia com uma massiva ida até ao recinto de Tulsa para catapultar a imagem de um presidente que teve uma gestão calamitosa da covid nos Estados Unidos e um comportamento vergonhoso nos eventos depois do assassinato de George Floyd por um polícia.

Trump está, portanto, já numa fase de desligamento da realidade – como sucede com todos os egomaníacos. Já se endeusou e julga que se pode permitir tudo para com os seus próprios eleitores. O que é bom. Significa que vai continuar a tomar decisões políticas e eleitorais com base na irrealidade. Donde, serão más. Para Trump. Mas boas para os Estados Unidos e para o mundo, porque ajudarão à derrota nas eleições de novembro.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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