‘Será que ela está à altura?’ Das formas sonsas às ostensivas de minar o poder das mulheres.

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Imagem de Iron Mountain Daily News.

E não é uma pergunta inocente ou de curiosidade. Não. É uma pergunta que insinua uma resposta: não, ‘ela’ não está à altura, ‘ela’ não é suficientemente boa, ‘ela’ não é capaz.

E é uma pergunta que tem muito de self fulfilling prophecy. Tanto se agoira a capacidade de uma mulher, tanto se rodeia o que ela faz de dúvida sobre o mérito e o talento e o valor, tanto se obriga uma mulher a perder tempo a dissipar as dúvidas sobre si (em vez de somente se ocupar com o seu real trabalho) que muitas vezes termina com uma subperformance. Ou, mesmo que não termine, que faça um trabalho muito catita, as dúvidas que se foram atirando aguçaram a exigência a pontos de ser impossível cumprir. E mesmo que até cumpra com distinção, qualquer imperfeição numa mulher é cobrada à exaustão, desproporcionada até o mínimo erro se tornar A MAIOR CALAMIDADE DE SEMPRE.

Também não devemos descurar as vezes em que as mulheres são colocadas em situações impossíveis, onde ninguém estaria à altura, precisamente para ser uma mulher a falhar – desta forma pode-se apontar o falhanço ao elemento feminino e protegem-se os homens de danos reputacionais.

Donde: estas perguntas não só são maliciosas porque induzem uma insinuação negativa, como pretendem ajudar a que o alvo da questão falhe. Nunca esquecer que o machismo é insidioso e hipócrita.

Mas vem esta introdução a propósito de Ursula von der Leyen. A presidente da Comissão Europeia conseguiu um pacote recorde para ajudar os países da UE na recuperação económica pós pandemia. É não só massivo no volume de fundos que vai colocar à disposição dos países, como será maioritariamente a fundo perdido, sem necessidade de pagamento posterior pelos países de destino. Não é, portanto, uma reedição do resgate financeiro de 2011. Tem ainda a particularidade de ser uma forma de eurobonds, uma vez que é a própria UE que se vai endividar para financiar esta ajuda aos países – algo que até há pouco tempo provocava apoplexias em vários governos europeus, como os Países Baixos ou a Áustria.

Em suma, esta resposta à crise por von der Leyen é uma ótima notícia, é disruptiva no bom sentido, é responsável – tanto financeiramente como na perceção da necessidade de políticas compassivas -, é corajosa, é sólida. Um excelente trabalho de von der Leyen.

E, no entanto, há poucos dias a Bloomberg – a do tal candidato presidencial democrata com o mesmo apelido, que já desistiu e que havia assediado várias mulheres – apresentou um texto sobre von der Leyen que era todo um tratado de machismo cínico. Começava pelo título: oficiais europeus perguntam se têm a pessoa errada a comandar o espetáculo. Continuava por todos os caminhos da sargeta: fugas de informação eram dadas como prova da incompetência de Ursula, tinha sido repreendida por Merkel, era um peso pluma, os comissários conspiram contra ela (e aqui não tenho dúvida nenhuma, conspiram sempre contra mulheres para minar o seu poder), pediu desculpa a Itália pela falta de ajuda inicial da UE com o covid (como se não o devesse ter feito), não tem contactos com os líderes europeus, não foi primeira-ministra, não tem uma boa equipa, não percebe como funciona a UE, enfim, a senhora não percebe nada de nada. Por todo o lado perpassa a mensagem: ela não é suficientemente boa para o que é preciso. Nem se trata de expor erros de von der Leyen – é mesmo só apontar-lhe fraquezas.

Claro que a resposta à crise económica da pandemia pode correr mal e Ursula von der Leyen vir a ser lembrada como uma presidente da comissão de má memória. Não seria a primeira. Mas nenhum homem seria dado de antemão como tão fraco em tão pouco tempo e antes de ter oportunidade para mostrar o que vale. E, como se constata, a dúvida sobre a capacidade de Ursula propor uma boa resposta era francamente e maliciosamente inflacionada.

As questões das mulheres e o poder são muito interessantes e interpelam-me. As formas como se boicota o exercício do poder – qualquer um: político, económico, cultural, mediático,… – pelas mulheres são bastante tipificadas e com cada vez menos vergonha, desde logo porque há cada vez mais mulheres exercendo poder.

Uma das estratégias é esta: sonsamente, hipocritamente, falsamente, ir minando a credibilidade da mulher e o benefício da dúvida que merece até prova em contrário. Para que, quando venham os bons contributos, já não haja ambiente para os receberem consoante o real mérito.

Outra forma é mais bruta e escancarada. Ocorreu há pouco tempo com a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, em resposta ao confinamento obrigatório devido à covid. Não é desconhecido que a contestação à covid tem vindo sobretudo dos setores mais à direita, mais conservadores, mais alt right. Nos Estados Unidos, isso significa vir também dos adeptos do porte de armas livre e dos proprietários de armas. Donde, os contestatários ao confinamento chegaram a invadir, armados, ostensivamente armados, o Capitólio Estadual do Michigan para amedrontar a governadora. Gretchen Whitmer foi também alvo de ameaças de morte.

Pelos Estados Unidos em vários estados existiram protestos pelos confinamentos obrigatórios. No entanto, curiosamente – ou não -, o único estado onde existiram estes protestos violentos foi num que tem uma governadora, e as ameaças de morte foram dirigidas a uma mulher.

É assim: em se tratando de uma mulher com poder, há esta maior propensão para recorrer à violência física, ou à ameaça dela. Porque somos vistas como fracas que não aguentam a pressão, que se amedrontam. O desafio é sempre maior, obrigando a uma resposta de força – que, com sorte, poderá ser facilmente criticada porque se preferem as mulheres suaves.

Temos de estar atentos a estas estratégias, e vê-las como o que são: a léguas da justa crítica ou contestação política e somente tentativas de arredar as mulheres do poder.

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