O ícone industrial da masculinidade continua tóxico

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Apesar do papel do automóvel nas nossas vidas se ter ampliado, não há dúvida que a indústria automóvel é no essencial o mesmo dinossauro do século passado com roupagens modernas, que lhe disfarçam a senilidade e uma representatividade que ainda advém da cultura formada numa sociedade patriarcal.

O automóvel foi sempre um ícone do desenvolvimento industrial, e por isso infelizmente, apresentado como um modelo de industrialização nos países em desenvolvimento. O automóvel é hoje um tema intratável na agenda climática, cuja produção atingiu os astronómicos 80 milhões de unidades/ano, e um dos principais responsáveis pelos níveis de emissão de GHG.

Uma indústria que tem um modelo de negócio que, no essencial, pouco difere do dos primeiros estágios da motorização, permanentemente suportada nas enormes economias de escala, evitou sempre equacionar um outro modelo mais resistente aos choques do mercado.

Sobrevive no seu modelo de negócio muito sofrível, que piora de dia para dia, com sérios problemas de rentabilidade devido às margens miseráveis, resultado da sobrecapacidade que por sua vez alimenta uma sobreprodução mundial. Um monstro com elevado grau de isomorfismo que só sobrevive se continuar em perpétuo crescimento, e a ser permanentemente resgatado com dinheiros públicos cada vez que há um abalo no mercado.

Se industrialmente, e em termos de modelo de negócio, as mudanças foram poucas, culturalmente as coisas também nunca mudaram tanto como se desejaria. Vejamos os valores que sempre estiveram associados à cultura do automóvel: o individualismo, a liberdade, a mobilidade social, mas também outros bem menos abonatórios, a supremacia sobre a natureza e o espaço público, e a afirmação da masculinidade.

É certo que longe vão os tempos dos anúncios marcadamente sexistas das décadas de 50 e 60, mas mais longe vão ainda os dos elegantes anúncios dos anos 30’s que davam à estampa mulheres superiormente elegantes, activas e convictamente independentes, algo muito raro de ver nas publicidades actuais.

Fonte: VintageCardsAds

Mesmo depois de todo o esforço de comunicação e marketing para se adaptar a valores e gostos mais contemporâneos, pouco de substancialmente inovador aconteceu no sector, a não ser por exemplo, um elevado grau de personalização das viaturas. Ainda que, muitas destes inúmeros modelos todos customizados pelo cliente são elaborados sobre a mesma plataforma, revelando mais uma vez a enorme rigidez da indústria.

Numa época em que a cultura automóvel está em decadência e em que as consciências da nova geração despertam para as alterações climáticas, a indústria procura novas estratégias de sobrevivência. Tenta um rebranding para “mobilidade” e uma mais significativa alteração tecnológica para o “veículo eléctrico”. Se o modelo de negócio da mobilidade tem pressuposto o redireccionamento da propriedade individual do veículo para o conceito partilha, o que vai provavelmente otimizar, e muito, o uso do parque automóvel, a alteração tecnológica para o veículo eléctrico também é benéfica em termos de emissões.

A perspectiva macroeconómicas pós-COVID dá à indústria e aos Governos indicações de uma recuperação do sector, ainda que a níveis inferiores aos pré-pandemia, com o comportamento dos consumidores a ser, no futuro, preferencialmente por sistemas de transporte multi-modal. A nível regulatório vamos assistir cada vez mais à proibição de circulação automóvel nos centros das cidades, e ao aumento do veículo eléctrico e dos sistemas partilhados.

A questão é que a indústria não quer perder a sua dimensão de paquiderme económico com tudo que a envolve, as políticas publicas favoráveis, o pacto com as outras indústrias provedoras de serviços e infraestruturas para o automóvel – e sonha este mundo novo num quadro de mundo venho. Os cenários apresentados pela indústria são de cenários de mobilidade com os mesmos níveis das actuais unidades – aproximadamente 1000 milhões de automóveis ligeiros, – o que é uma insanidade em termos sustentabilidade ambiental. É óbvio que a solução para a descarbonização da mobilidade passa pelo veículo eléctrico, mas muitos outros impactos negativos do automóvel no que respeita ao ambiente e à cultura não estão ainda endereçados.

Fonte: Ford

O futuro apresentado pelos actuais pioneiros da indústria, no que concerne ao carro eléctrico, é tudo menos entusiasmante. Se por um lado temos os já conhecido modelos com motores de combustão, modestamente reconfigurados para uma motorização eléctrica, do outro lado temos modelos totalmente novos que não inspiram a desejada transformação na cultura automóvel – bem pelo contrário, basta atentar na estética do que é proposto. Vejamos o exemplo do novo modelo da Tesla, o cybertruck.

Máquinas marciais, linhas direitas com arestas vivas, um aspecto bélico de viatura blindada e pós-apocalíptica saída de sonhos distópicos. Uma estética que é ainda mais ofensiva do que a que conhecíamos: ao espaço público e aos valores da natureza, mas pior; ao próprio ser humano e à convivialidade – todo ele inspira agressividade. Não é difícil imaginar que poucos transeuntes sobreviverão a um atropelamento por uma máquina destas.

Não espanta ninguém a adoração que uma nova direita política devota à figura do criador do cybertruck, por verem nesta criação a representação dos valores políticos e culturais que filiam – diga-se, todos bastante tóxicos.

Fonte: Tesla

Também ficou evidente, para quem podia andar mais distraído, que as preocupações de Elon Musk (e de outros como ele) não são o planeta, o ambiente e as alterações climáticas, ou mesmo a igualdade social, ou as questões de género. A sua única preocupação é promover a salvação dos mais aptos pela tecnologia, em corrida acelerada daqui até Marte.

O automóvel não abandonou os piores valores da sua cultura tóxica, temo mesmo que os tenha amplificado – em particular no que (des)respeita às sérias questões ambientais e climáticas e na desconsideração da mundivisão feminina – está condenado.

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