O mundo não vai mudar. Mas vai mudar.

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Tear com Tecelão, de Vincent van Gogh. Exposição na Tate Britain, junho de 2019.

Vai mudar, sim, depois deste tempo estranho e desta paragem, tudo imposto pela malfadada covid-19. E nem sequer vai mudar para ficar tudo na mesma, como no filme. Também não sei como vai mudar, exatamente em que direção, com que proporções, em que dinâmicas. Mas vai mudar, porque essa é a ordem das coisas – ou, melhor, a desordem das coisas quando uma disrupção tão impactante nos acontece.

Não é wishful thinking meu, não se enganem. É mesmo certo que mudará. Tenho por hábito olhar para a realidade, inclusive a do passado, para prever a realidade do futuro. E olhando para o passado, mais recente ou mais longínquo, percebemos que as disrupções são sempre momentos de mudança, de ruptura, de novas direções.

A crise de 2008, com as crises das dívidas europeias a seguir, trouxe mudanças que ninguém conseguia prever. Os alvos da crise, os perdedores, os que tiveram as suas casas afundadas para os bancos por não conseguirem mais pagar empréstimos, os que ficaram sem emprego, os que tiveram de mudar de cidade ou de país ou de continente, os que viram as suas empresas e sonhos em que tinham investido a desmoronar-se, todos eles ganharam consciência de que tinham sido usados e deitados fora pelos bancários e banqueiros que se dedicaram a inventar produtos financeiros que nem eles entendiam e a praticar falcatruas. As consequências estão à vista. A extrema direita cresceu, numa espiral de ódio, em parte porque uma porção da população sentiu que valia nada para o sistema que protegeu os seus abusadores (quantos banqueiros foram presos pelos danos causados ao mundo inteiro?) Os movimentos anti capitalistas de esquerda também, motivados pela lógica mais simples: um capitalismo que permite destemperados fazendo milhões sem qualquer sustentabilidade real e que terminam entalando a população mundial inteira, não serve.

A primeira guerra mundial trouxe outro tipo de mudanças. A participação de toda a população no esforço de guerra – nas famosas e infames trincheiras, combatendo, fazendo enfermagem aos soldados doentes e feridos – resultou numa parte grande da população percebendo o quão era fundamental. Terminou com as castas informais estranhadas no modo de vida europeu. Exterminou o estilo de vida de uma aristocracia que vivia quase com panache medieval, nas suas casas senhoriais gigantescas, mantidas fazendo uso de dezenas ou centenas de criados, proprietária da terra e das ruas chiques das cidades e reservando aos outros a mera condição de inquilinos e jornaleiros. Esta mole humana de criados e trabalhadores agrícolas pobres, sem nenhuma expetativa de melhoria de vida, encontrou com a guerra o seu próprio valor. Trabalhar numa casa senhorial ou nas terras dos grandes proprietários agrícolas passou de moda, ficou destino para muito menos gente, e os antigos criados e jornaleiros dedicaram-se à procura de uma vida mais prazenteira e bem paga e que lhes permitisse viver sem ser somente para dar bem-estar a outros. Os ideais socialistas, perante a desigualdade do início do século XX, ganharam tração – porque estas castas mais baixas se sentiam iguais aos antigos senhores e ganharam consciência do valor do seu trabalho e engenho. As mulheres começaram a ter direito de voto. As decisões não podiam só continuar feitas pelos homens da aristocracia endinheirada. Pela Europa e Estados Unidos houve grandes diferenças entre países, mas as dinâmicas de mudança seguiram o mesmo sentido.

Na segunda guerra mundial, o mesmo. O trabalho das mulheres – que sustentaram praticamente sozinhas as atividades produtivas enquanto os homens estavam confinados às forças armadas – mudou absolutamente tudo. Novamente: as mulheres tomaram consciência das suas capacidades, do seu valor, de como tinham sido centrais no sucesso do esforço de guerra. Bem tentou, a sociedade patriarcal, que as mulheres regressassem a casa nos anos 50, mas a rutura estava feita. Quando se percebe o valor próprio, a importância do que se faz e produz, depois disso não há como convencer ficar espartilhado num papel secundário em que outros decidem por nós e arrecadam os proveitos.

Os movimentos independentistas das colónias no pós-guerra seguiram a mesma lógica: depois de combaterem pelas suas metrópoles na guerra, era impossível que voltassem ao estado de felizes colonizados sem possibilidade de determinar o seu próprio futuro e organização social. Os operários, igual. A seguir a lutarem, perderem membros, verem amigos e familiares morrendo, claro que exigiram a construção de um estado social compassivo que funcionasse como rede de segurança.

Não sei como virá a mudança desta vez. Mas há linhas de continuidade. Uma série de trabalhadores ditos pouco qualificados – supermercados, cuidadores em lares, recolha de lixo, limpezas, operadores dos transportes públicos, operários, trabalhadores de toda a cadeia alimentar, e mais uns tantos – , ao lado de outros como as forças de segurança, funcionários públicos, professores, sem esquecer os ligados aos cuidados de saúde, do diretor do hospital ao auxiliar, foram fulcrais para que a vida em confinamento não empancasse totalmente e, de forma diferente, permanecesse a atividade possível. Ou, em alguns casos, que alguns de nós se mantivessem vivos.

Os países liderados por mulheres tiveram os melhores resultados e com os melhores procedimentos (leia-se, os menos intrusivos na privacidade dos cidadãos). Esse bom princípio elementar das políticas públicas que é manter o maior número de pessoas vivas foi melhor implementado por mulheres. Por outro lado, os líderes mais calamitosos e incompetentes são homens – todos eles fazendo uso daquela bravata masculina muito tóxica que existe em abundância nos homens mais limitados e sexistas.

Não há como negar a partir de agora a incapacidade política da masculinidade tóxica, nem o bom senso e a mão firme numa crise de líderes mulheres. Não dá para mascarar nem com respiradores N95 que os trabalhadores de funções ditas sem necessidade de qualificações são um sustentáculo do nosso modo de vida complexo e confortável – e devem ser recompensados tendo em conta o pilar que são.

Não é provável que o capitalismo soçobre depois da covid-19. Em todo o caso, está com reputação pelas ruas da amargura depois de 2008. E esta crise mostrou o papel essencial do poder centralizado num estado. O capitalismo terá de amputar para sobreviver. Também não prevejo golpes de estado e revoluções sangrentas. Afinal todos queremos viver em paz. Mas podem suceder. O que prevejo com convicção é um shift nas relações de poder dentro das sociedades e das organizações políticas. Os sucessores dos aristocratas eduardianos que entraram com pujança e confiança em 2020 terão de ceder espaço aos que perceberam nestes dois meses quanto valem – e querem o seu quinhão, do rendimento e do poder de decisão.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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