Com a experiência que estamos a viver, fechados em casa, ficámos com a sensação que de repente o mundo abrandou, ou mesmo parou, como se todo o planeta tivesse feito um colossal “pitstop” na sua rotina diária – e tivesse mesmo parado de girar – como se agora fosse a vez do Sol girar à volta de um planeta Terra parado. Nada mais ilusório e enganador, se atendermos aos efeitos práticos desta crise, mesmo considerando o colapso económico temporário.
Mas como pode esta percepção de abrandamento estar errada? Observámos durante semanas muitos milhões de pessoas confinadas em suas casas, fronteiras fechadas, aeroportos encerrados, aviões em terra, carros parados, preços de energia negativos, e até as emissões poluentes para a atmosfera a diminuírem! – o que é isto, se não um sinal de uma violenta travagem no ritmo acelerado da actividade humana?
Olhemos primeiro para nós – os humanos. Comecemos por aqueles para quem é evidente que tudo acelerou e a sobrecarga laboral aumentou: todo o pessoal da saúde ligado aos serviços de emergência hospitalares, dos médicos aos serviços de limpeza; os bombeiros, mas também os serviços públicos essenciais (água, electricidade, correios, segurança, defesa, justiça, etc.). Para todos estes a carga laboral e os níveis de exigência fruto das novas regras sanitárias foi bastante superior ao normal e o foi-lhes exigido um esforço suplementar.
Depois todos os que ficaram em casa em teletrabalho. Se para muitos o aumento da carga física pode não ser uma primeira evidência, basta perguntar aos milhões de mulheres que ficaram em casa com família, filhos pequenos, pais, para desmontar a fábula da paragem temporária.
Mas também todos os colarinhos brancos, profissionais liberais, técnicos altamente especializados que, resultado das novas tecnologias de comunicação e dados, estão em casa em teletrabalho. Para estes, pouco compensa os g de aceleração que sofreram. O espaço e o tempo foram significativamente reduzidos na vida diária, e são a demonstração que a aceleração se deu e transformou os dias de trabalho. As videoreuniões, os webinars, as aplicações colaborativas são tudo tecnologias conhecidas, mas nunca tinham sido utilizadas a esta escala planetária e providas por um número tão limitado de empresas verdadeiramente mundiais. Todas estas tecnologias nos deslocam no espectro das frequências magnéticas e na fibra à velocidade da luz, para qualquer lugar no planeta. Gente que de manhã está entre Lisboa, Luanda e Doha, à tarde em Nova York e São Paulo e à noite ainda tem que esperar por alguém que está algures no extremo oriente.
Para muitos destes teletrabalhadores passadas as primeiras semanas é agora por demais evidente que a poupança das deslocações de carro ou de avião não lhes trouxe economias de tempo, ou mais conforto, ou mesmo mais rendimento. Trouxe isso sim, a algumas organizações, aumentos de produtividade exponenciais, aumentos esses que por sua vez vão trazer o agravamento dos níveis de equidade social e económica entre trabalhadores. E quando dizem que vai tudo voltar ao normal – não vai – porque nenhuma organização destas vai prescindir dos ganhos de produtividade apropriados.
E os milhões de desempregados que a paragem económica, nomeadamente do sector dos serviços, colocou em casa sem rendimentos, para esses o mundo também acelerou? Eles pararam, a economia não. São todos os que a economia vai alijar para se tornar mais ligeira e veloz, e poucos voltarão ao mercado de trabalho a não ser que aceitem subempregos, piores do que aqueles que perderam – é a condição da eficiência.
Não, o mundo não abrandou, pelo contrário: acelerou, e muito. E o consumo de energia primária já não é uma medida para este efeito, quando tomado ao nível económico global. O consumo de energia para deslocações físicas foi transferido para os servidores da cloud, e o transito diário é agora de bits e não de Joules, não está nas vias rodoviárias e nos aeroportos, mas nos servidores, nas redes de fibra ótica e nas antenas de comunicações. Será que é agora que se consegue o almejado desacoplamento do crescimento económico do uso de recursos? Se falamos de recursos humanos, acho que a resposta é sim, dos outros recursos físicos tenho duvida que algum dia se consiga.
Os cientistas sociais sempre intuíram que o aumento da velocidade numa sociedade degrada e corrompe profundamente as relações sociais – declina o património, o espaço e o tempo, e aumenta a desigualdade – talvez, a aceleração trazida pela pandemia do COVID19, conjugada com todas as tecnologias de comunicação, controlo e vigilância seja a mega experiência social que necessitavam para testar a hipótese.
Pode ainda assim não ser o armagedão do capitalismo, o ponto em que o liberta de todos os atavismos sociais, mas esta é a disrupção com que muitos dos devotos da transformação pela aceleração e pela tecnologia sonharam, a partir daqui tudo é agora possível. É-lhes permitido sonhar o hipercapitalismo de cidades hi-tech, higienizadas, com vigilância omnipresente, energia nuclear, alimentos geneticamente modificados, e ter em comum serem governadas por líderes autoritários, – visões que nos oferecem verdadeiros pesadelos do mundo pós-COVID.