
E se, na dissolução das relações sociais e laborais resultantes da crise que vivemos, tivermos encontrado o ambiente perfeito para o avanço final da sociedade de mercado? Ou se, pelo contrário, o sistema capitalista não for mais capaz de relançar uma nova fase de crescimento e expansão global? As duas hipóteses são verosímeis.
Os exemplos dos sistemas biológicos, tão em voga nestes dias de pandemia, são bons para ajudar a reflectir sobre que economia queremos para o futuro, no pós-pandemia. Preocupa-nos muito a fase de crescimento exponencial de uma epidemia, mas não admitimos e nem consideramos cientificamente possível o crescimento ilimitado, mesmo sem medidas de contenção. Então, por que razão achamos possível que a dinâmica que determina a evolução do nosso sistema económico seja caracterizada por um crescimento permanente e exponencial? À economia não admitimos achatamentos e menos ainda o decrescimento.
Um dos fenómenos mais comentados tem sido o crescimento exponencial desta epidemia e o seu ponto de inflexão. A teoria de sistemas explica que este tipo de comportamento – o crescimento exponencial – é característico de sistemas com feedback positivo, sistemas normalmente positivamente realimentados. O feedback positivo é o que provoca nos sistemas físicos ou biológicos as tendências exponenciais, as espirais incontroláveis e a definitiva perda da estabilidade.
Pelo contrário, é o feedback negativo que permite o equilíbrio dos sistemas por forma a que estes se autocorrijam e não entrem em instabilidade permanente, como por exemplo em fenómenos de crescimento perpétuo. Nos organismos vivos, o feedback negativo é o chamado processo homeostático: ‘processo de regulação pelo qual um organismo mantém constante o seu equilíbrio. O conceito de homeostasia inclui todos os fenómenos adaptativos, processos de autorregulação, que são necessários para responder às modificações do organismo na sua interação com o meio.’
Voltando à economia, na macroeconomia, e no ainda quase consenso dos economistas neoclássicos, nada se opõe ao feedback positivo no sistema económico e às suas consequências, o crescimento contínuo e exponencial – é um dogma – o aumento da produtividade explica tudo.
O feedback positivo que tem realimentado o crescimento da economia mundial no sentido da sua evolução exponencial tem diferentes origens: da colonização de novos territórios, ao aumento da produtividade, até à mais recente globalização financeira. O grande investimento da ciência económica, que se tem socorrido da matemática e até da física moderna, tem sido sempre no aperfeiçoamento da componente de realimentação positiva da economia, no sentido do crescimento permanente.
É tempo de à semelhança dos organismos vivos adicionar algum feedback negativo à economia no sentido do equilíbrio e da autorregulação, até se necessário modificarmos o “organismo” para que este se adapte às novas realidades. Se continuarmos apenas com a realimentação positiva vamos muito provavelmente colapsar, ultrapassando os limites biofísicos do planeta, onde agora só meia-dúzia de céticos contrariam as evidências de perturbação ambiental e climática. Mas também no campo social, com a “desertificação” da sociedade, os pilares que garantem o equilíbrio social estão seriamente ameaçados com este modelo económico.
Nos próximos tempos vamos observar um fenómeno que pode chocar a sociedade, a subida dos mercados financeiros em paralelo com o agravamento do desemprego, mas que vai mostrar à saciedade a desconexão que o mercado de capitais conseguiu relativamente ao mundo laborar. Esta crise vai ainda demonstrar algo que há muito sabíamos, ao nível da indústria – a produtividade chegou a um nível que uma minoria dos trabalhadores consegue produzir quase tudo o que a economia requer. Quanto aos serviços a transformação e reconfiguração também vai ser muito profunda no pós-pandemia, e não há razões para acreditar que se não regularmos profundamente as actividades os empregos que surgirão serão ainda mais subempregos do que aqueles que foram destruídos.
Eu acredito que neste contexto de crises globais, e procurando uma resposta à questão inicial, a cooperação entre pequenas e médias economias descentralizadas e reguladas tem mais probabilidade de sucesso do que a remontagem de uma única e grande economia global sem controlo ou qualquer feedback negativo, com todos os riscos sistémicos conhecidos dos grandes organismos.
É bem tempo de criar organismos económicos mais pequenos, subordinados ao poder regulatório dos Estados e criar finalmente mecanismos de feedback negativo para que estes não cresçam indefinidamente e se autodestruam, e a nós com eles.