O inimigo visível

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Nestes tempos atipícos – para rimar com apocaliptícos – tenho-me recordado frequentemente das 20 Lições do Século XX, do Professor Timothy Snyder. Originalmente, as lições foram publicadas num post nas suas redes sociais logo após a eleição de Trump. No ano seguinte, em 2017, deram origem a um livro – On Tiranny.

Considero essencial lembrar algumas das lições hoje, porque me parecem proféticas e a ferramenta certa para navegarmos esta tempestade global.

Lição n.1: Não obedecer antecipadamente

“Muito do poder do autoritarismo é concedido voluntariamente. Em tempos como estes, as pessoas calculam com antecedência o que um governo mais repressivo pode querer, e muitas vezes oferecem sua adesão sem que lhes tenha sequer sido pedido. Você já começou a fazer isto, não foi? Pare. Obediência antecipada ensina às autoridades quão longe é possivel irem e acelera a servidão.”

Quantos de nós não ficaram em casa antes de declarado o estado de emergência? Quantos não retiraram os filhos da escola antes de as escolas terem encerrado? Quantos não imploram ao governo por medidas mais restritivas? Quantos se insurgem por ver pessoas na rua, chegando ao ponto de chamar as autoridades?

Lição n. 4: Atenção ao vocabulário dramático

“Quando escutar politicos, distinga certas palavras. Tenha cuidado com o uso expandido de “terrorismo e “extremismo”. Fique alerta para os termos fatais “excepcional” e “emergência”. Enfureça-se com o uso pérfido de vocabulário patriota.”

No estado do Missouri, um homem foi preso por se ter filmado a lamber produtos no supermercado. A sua acusação é “terrorismo”. O estado de “emergência” foi decretado em vários paises, incluindo o nosso. Medidas “excepcionais” são aprovadas diariamente, na sombra. Por todo o mundo surgem novos conceitos como “patriotismo cívico” e “patriotismo económico”.

Lição n.5: Manter a calma

“Mantenha a calma quando o impensável chegar. Quando o ataque terrorista acontecer, lembre-se que todos os autocratas, a todo o tempo, esperam ou planejam tais ocorrências para consolidar o seu poder. Lembre-se do incêndio do Reichtag. O desastre repentino que requer o fim da divisão de poderes, o fim dos partidos de oposição e afins, é o truque mais velho na manga Hitleriana. Não caia nele.”

Em França, Macron já livre da preocupação dos coletes-amarelos, está pronto para governar por decreto. Orban, na Hungria, já se lhe adiantou. O estado da California já deu avisos que a lei marcial poderá vir aí. O caso actual mais extremo parece ser o do UK, com a sua nova Bill 122 que, entre outras medidas orwelianas, permite: a detenção e quarentena forçada de qualquer pessoa suspeita de estar infectada, incluindo crianças, a retirada à força de material biológico para teste, o fim da investigação de mortes suspeitas, cremações obrigatórias ao arrepio da liberdade religiosa (e impossibilitando exames post-mortem), o tratamento médico compulsório através de uma simples assinatura de um médico. Em Portugal, contrariando as directrizes da OMS, a DGS quer separar os recém-nascidos das mães se estas testarem positivo. É o fim da autonomia corporal e um ataque massivo à nossa dignidade humana.

Lição n. 6: Proteja a nossa linguagem

“Seja cuidadoso com a nossa linguagem. Evite pronunciar as mesmas frases que toda a gente usa. Use a sua própria forma de falar mesmo que ela transmita o que as outras pessoas dizem. (Não use a internet antes de ir para a cama, carregue os seus equipamentos fora do quarto e leia). O que ler? Talvez “O Poder dos Poderosos” de Václav Havel, “1984”, de George Orwell, “A Mente Captiva”, de Czesław Milosz, “O Rebelde”, de Albert Camus, “As Origens do Totalitarismo”, de Hannah Arendt, ou “Nada é Verdadeiro e Tudo é Possível”, de Peter Pomerantsev.”

Paremos de usar mantras como “Vamos ficar todos bem”, evocativos de “Arbeit macht frei”. Não, não vamos ficar todos bem e quanto mais depressa percebermos isso, melhor para todos. E para todas.

Lição n.7: Destaque-se

“Destaque-se. Alguém precisa de o fazer. É fácil, por palavras e ações, acompanhar a maioria. Pode parecer estranho fazer ou dizer algo diferente. Mas sem essa inquietação não existe liberdade. No momento em que você dá o exemplo, quebra-se o encanto exercido pelo status quo, e muitos a/o seguirão.”

Neste momento, estão milhões de pessoas em prisão domiciliária. Se os países em vias de desenvolvimento copiarem as medidas draconianas ocidentais – com consequências que so se podem adivinhar como catastróficas – serão biliões de pessoas saudáveis a ficar impedidas de sair à rua. Este é o momento em que fazemos uma pausa e nos questionamos, as nossas vidas estão em jogo. Vamos obedecer passivamente ou vamo-nos destacar?

Lição n.8: Proteja a verdade

“Acredite na verdade. Abandonar factos é abandonar a liberdade. Se nada é verdadeiro, então ninguém pode criticar o poder, porque não há base para o fazer. Se nada é verdadeiro, então tudo é espectáculo. A maior carteira paga as luzes mais ofuscantes.”

Atenção aos cenarios apocalípticos dos milhões de mortos que este vírus fará. Temos de questionar os números, mesmo os oficiais. A vida já regressou à normalidade em Wuhan e na Coreia do Sul, sem ter provocado milhões de vitimas. Sem testes universalizados – que nenhum país tem com excepção talvez da Islândia – não se pode aferir correctamente a taxa de mortalidade.

Lição n. 9: Investigue

“Investigue. Descubra os factos por si mesmo. Perca mais tempo com textos longos. Subsidie jornalismo de investigação subscrevendo midía impressa. Tome consciência que muito do que está no seu ecra, está lá para seu prejuízo. Informe-se sobre sites que investigam pushes de propaganda estrangeira.”

A CBS News acabou de usar uma imagem de um hospital italiano, afirmando falsamente tratar-se de um hospital em Nova York. Pode ter sido um erro de edição, como a CBS justificou, mas pode também ter sido intencional. Muitas pessoas começaram a fazer filmagens do seus hospitais locais porque contrariam as noticias de sobrelotação. Eu própria estive ontem no meu hospital cantonal, na Suíça, para fazer um raio-X, e das urgências ao parque de estacionamento, parecia um hospital fantasma. Talvez seja uma excepção positiva, e não há dúvida que a qualidade e capacidade do sistema de saúde suíço não se comparam com o italiano ou o português. Mas supostamente a Suíça é um dos países mais afectados e tem dos piores números europeus de mortes per capita. É esta a “verdade” que chega a Portugal. Será? Devemos sempre continuar a investigar as experiências pessoais em cada país e não assumir que tudo o que vemos nos nossos ecrãs é a verdade.

Lição n.10: Pratique política corporal

“Pratique politica corporal. O poder quer que o seu corpo permaneça suavamente na sua cadeira e que as suas emoções se dissipe no ecrã. Saia para a rua. Ponha o seu corpo em lugares não familiares e junto de pessoas desconhecidas. Faça amigos e marche com eles”.

Como por em prática esta regra fundamental da democracia quando estamos em estado de emergência? Os primeiros direitos e liberdades a nos serem roubado são o direito à greve e a liberdade de associação. Quando o poder sabe que os cidadãos não se podem insurgir, põe em prática todas as medidas autoritárias com que sempre sonhou, livre e impunemente.

Lição n.11: Conheça o seu vizinho

“Faça contacto visual e conversa de circunstância. Isto não é apenas boa educação. É uma forma de se manter em contacto com o seu ambiente, de destruir barreiras sociais desnecessárias e de perceebr em quem pode e não pode confiar. Se entramos numa cultura de denúncia, você vai querer conhecer a paisagem psicológica do seu dia-a-da.”

Como é óbvio, é tarde demais pois já entrámos na cultura de denúncia. Desde vizinhos a denunciar outros porque os ouvem tossir, a pessoas a chamar a policia por verem algumas crianças a brincar no parque infantil público que, na Suíça, não foram fechados, felizmente. Se reportar à polícia crianças por brincarem ao ar livre não nos obriga a uma pausa para pensar, não sei o que o fará.

Lição n.12: Atenção às images

“Seja responsável pela cara do mundo. Repare nas swastikas e nos outros sinais de ódio. Não vire a cara e não se acostume aos mesmos. Remova-os você e seja um exemplo para outrém.”

Quem não usa máscara e luvas na rua não é um terrorista. Há um sem-fim de desinformação sobre este tema, não há consenso sobre a eficácia do uso destes assessórios pela população saudável.

Pessoalmente, já não consigo ver mais arco-irís sem ficar enjoada. Vejo-os como representação da passividade, ignorância e estado de anestesia que é esperado de nós.

Lição n.14: Pratique a caridade

“Doe regularmente para causas justas, se puder. Seleccione uma instituição de caridade ou uma associação e programe um pagamento automático. Assim saberá que fez uma escolha livre que suporta a sociedade civil em ajudar outros a fazer algo positivo.”

Lição n.15: Proteja a sua esfera privada

“Estabeleça uma vida privada. Autocratas sem escrúpulos usam o que sabem sobre si como forma de pressão e controlo. Limpe o seu computador. Lembre-se que e-mail é escrita no céu. Considere utilizar formas alternativas à internet, ou pelo menos, use-a menos. Tenha trocas interpessoais em pessoa. Pela mesma razão, resolva qualquer potencial problema jurídico. O autoritarismo funciona como um Estado chantagista, que procura o seu ponto fraco contra si. Tente não ter demasiados pontos fracos.”

A julgar pelo Instagram e Tiktok, esta regra parece impossível de por em prática nesta altura.

Lição n.16: Pense globalmente

“Aprenda com outros países. Mantenha amizades no estrangeiro, ou faça novos amigos ali. As dificuldades presentes são um elemento de uma tendência generalizada. E nenhum país irá encontrar a solução sozinho. Assegure-se que você e a sua família têm passaportes.”

Esta pandemia é global, está em quase todos os países. Mas, mais grave, a forma de reação também parece ser global, estando a ser copiada pela maioria dos países. São poucos os que não impuseram quarentenas e não fecharam escolas, restaurantes e negócios. Na Europa temos a Suécia e a Islândia como exemplos de que a quarentena não é necessariamente a única ou sequer a melhor solução.

Lição n.17: Atenção à militarização

“Tenha cuidado com os paramilitares. Quando os homens com armas que sempre anunciaram ser contra o sistema começarem a usar uniformes e a marchar com tochas e imagens de um líder, o fim está próximo. Quando os paramiliatares pro-líder, a polícia estatal e os militares se misturam, é game over.”

Praticamente todos os países já envolveram os seus militares no combate ao vírus. Mas o perigo reside nas forças paramilitares, que já se começam organizar, como na India, por exemplo.

Lição n.19: Coragem

“Seja tão corajoso/corajosa quanto puder. Se nenhum de nós estiver preparado para morrer pela liberdade, então todos nós morreremos em servidão.”

Esta é a lição mais importante. É muita arrogância da nossa parte acreditar que somos mais espertos ou sensatos que a população alemã em 1937. Também eles foram optimistas, acreditarem que tudo ia ficar bem e, sucumbindo ao medo de um inimigo invisível, obedeceram antecipadamente. Preocupemo-nos primeiro com o inimigo visível, porque ele já está a mostrar a sua cara.

Os nossos direitos são o que nos mantém vivos, em dignidade e liberdade. Muitas pessoas antes de nós deram a sua vida para que os tívessemos, é nosso dever protegê-los com a nossa.

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