Roma, setembro de 1995. Um grupo de jovenzinhos parvos (todos os jovenzinhos são de alguma forma parvos), que incluía amigos meus e esta que vos escreve, passeava por Roma usando transportes públicos. Incluindo o (reduzido, que por razões óbvias Roma não é amigável para transportes subterrâneos) metro. Algumas das vezes um ou outro elemento do grupo, por bravata tonta própria da idade ou por falta de trocos, saltavam os torniquetes do metro à entrada e à saída. Numa dessas vezes, foi uma das minhas amigas que não tinha bilhete nem conseguiu comprar, saltou, um fiscal percebeu o que se tinha passado, veio atrás do grupo, nós corremos e entrámos no metro mesmo antes de fecharem as portas, fugindo do fiscal.
A minha amiga não é negra. É uma branca, de uma família well to do que viveu vários anos no Brasil a seguir ao 25 de abril e com um pai que trabalhou muito próximo de Salazar. E é uma pessoa honesta, com valores morais bastante marcados, na verdade, que num dia fez uma brincadeira parva de juventude e ia sendo apanhada. Em Portugal teria sempre uma imediata presunção de seriedade, porém em Itália era somente uma turista espertalhona, a quem a polícia bem podia decidir dar uma ensinadela.
Eu própria já pratiquei a minha infração de contrabandear um pré-adolescente no metro no fim de um concerto. Contei-a no facebook e reproduzo-a:
‘No Rock in Rio de 2018 levei o meu então 12 year old e um amigo da mesma idade num dia de concertos. Quando acabou, estava uma confusão fenomenal de gente, a rua que eu tinha combinado descer para entregar o amigo do 12yo aos pais afinal obrigava a uma caminhada tremenda no meio da multidão (ficava do lado oposto ao nosso), acabámos por decidir regressar como tínhamos vindo: de metro. O meu 12yo e eu tínhamos bilhete de metro, o amigo não tinha. Eu estava sozinha com os dois miúdos, a fila para comprar bilhetes estava para horas, pelo que decidi contrabandear o amigo no metro: era o mais baixinho e disse-lhe para responder que tinha 8 anos se alguém lhe perguntasse (o que ofendeu grandemente o petiz, claro). Ninguém perguntou. Pensei que o pior que me podia acontecer seria pagar a multa de andar sem bilhete (o que faria alegremente e consideraria de toda a justiça). Nas máquinas do metro passámos os dois juntos só com o meu bilhete, à frente da polícia. Eu sorri aos polícias, eles sorriram de volta, não perguntaram nada, se desconfiaram da idade ou não quiseram saber ou pensaram (bem) que naquela noite não era boa ideia chatear uma mãe sozinha com dois miúdos no metro saindo de um concerto. E, claro, sou do grupo dominante, tenho bom ar, vestia um casaco de cabedal verde e ténis fancy que contrabalançavam os jeans rotos no joelho.’
E já houve ocasiões em que não pratiquei infrações mas podia, e até seria ajudada a isso pelos fiscais. Há pouco tempo viajava de comboio para o Porto, com bilhete de comboio comprado na net que não tinha tido tempo de imprimir. Veio o revisor e pus-me a abrir o ipad onde tinha guardado o bilhete. Nem precisei de mostrar. Ele, de tão convencido (e bem) que eu tinha bilhete, disse o meu nome, associado ao bilhete, e perguntou se era eu. Podia ter-me pedido o nome, mas nem isso. Automaticamente supôs que não estava ali no comboio sem querer pagar. A complacência para os brancos, sobretudo de classe média e para cima, é notória.
No entanto, duvido que haja alguém em Portugal que não tenha já cometido infrações, pequenas ou grandes. Sei que nas lojas e supermercados há uma tremenda indústria securitária para prevenir que os produtos à venda sejam roubados – e, garanto-vos, não é a pensar na comunidade negra ou cigana, é mesmo na maioria dos brancos. Sei que a pequena desonestidade e chico-espertice impera na vida quotidiana e nas relações pessoais e profissionais de muita gente (mais uma vez: gente com pele clarinha). Sei, por fim, que Portugal é um país com níveis de desconfiança interpessoal atrozes – já houve um inquérito da OCDE que nos colocou como o país com as pessoas mais desconfiadas entre si e das instituições da Europa e do mundo desenvolvido (ena!) e o European Social Survey também mostra dados semelhantes. Num estudo britânicos de 2015, em 15 países Portugal ficava em 4º lugar dos mais desonestos.
Neste país de pessoas que não primam pela lisura extrema e pela mais cristalina honestidade, teve piada (not!) ver tanto racista indignado com uma senhora que levou num autocarro a filha de 8 anos sem o passe (que tinha, já mostrado à comunicação social, e que, de resto, nesta idade é gratuito, pelo que nunca haveria prejuízo para a empresa). E que considerasse essa ninharia justificação para a fúria do motorista da Vimeca, a ponto de chamar um polícia. E, de seguida, uma eventual hostilidade da dita senhora justificando a agressão brutal que lhe ofereceram, acrescida da sempiterna desculpa ‘foi uma queda’.
Estes pequenos patifórios portugueses brancos, que não brilham pela honestidade mas se arvoram em vestais indignadas e moralistas com uma mãe negra que se esqueceu do passe da filha (e insistiu em seguir viagem e fez muito bem, que ficar ao frio e ao perigo numa paragem à noite não é tolerável), deviam olhar para dentro e pensarem se não fizeram já pior. De seguida, ponderarem que se aceitam a brutalidade policial como resposta absolutamente desproporcional a ninharias, é bem provável que a polícia se sinta legitimada para aplicar a brutalidade com ainda mais liberalidade. E, às tantas, essa brutalidade vai calhar aos patifórios portugueses de pele mais clara.