Este mundo não é para engenheiras

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Praça 6 de Dezembro de 1989, em Montreal, onde foi construído este monumento de homenagem às vítimas, com o nome das 14 mulheres executadas naquele dia.

Há 30 anos, no dia 6 de Dezembro de 1989, Marc Lépine, um homem de 25 anos rejeitado pela École Polytechnique, um instituto de engenharia em Montreal, no Canadá, matou 14 mulheres, 12 delas estudantes de engenharia.

O assassino entrou no instituto armado com uma faca de mato e uma arma semi-automática, aguardou à porta de uma sala de aula onde estavam cerca de 60 estudantes e professor. Separou os homens das mulheres em cantos opostos da sala e ordenou aos homens que saíssem. Segundos depois perguntou às mulheres petrificadas: “Sabem porque estão aqui? Porque são estudantes de engenharia. Vocês são um bando de feministas e eu odeio feministas.” Depois disso disparou uma rajada de tiros que matou 6 mulheres de imediato (algumas foram atingidas com mais de 8 balas, segundo os relatórios das autópsias). A seguir percorreu os corredores, escritórios e cafetaria em busca de mais mulheres para alvejar. Conseguiu matar 14 e ferir mais 13 antes de virar a arma para si próprio.

Deixou uma nota de suicídio que a polícia se recusava publicar porque contrariava a versão oficial de a causa do massacre ser “saúde mental”, a psicologia desviante de um único indivíduo, solitário e doente. Felizmente, uma jornalista teve acesso ao bilhete e publicou-o. Nele se lia: “Se eu cometer suicídio hoje, 89-12-06, não é por razões económicas (pois esperei até esgotar todos os meus meios financeiros, até mesmo recusando empregos), mas por razões políticas. Porque eu decidi enviar as feministas, que sempre arruinaram a minha vida, para o seu Criador. Durante sete anos a vida não me trouxe alegria. […] Mesmo que o epíteto do “assassino louco” me seja atribuído pela imprensa, eu considero-me um erudito racional. […] Sendo eu um conservador por natureza (exceto na ciência), as feministas sempre me enfureceram. Eles querem manter as vantagens das mulheres (por exemplo, seguro mais barato, licença maternidade prolongada precedida por licença preventiva etc.) enquanto se apoderam das vantagens dos homens.” A carta termina com uma lista de dezenove nomes de conhecidas activistas, com uma nota na parte inferior: “Quase morreram hoje. A falta de tempo (porque comecei tarde demais) permitiu que estas feministas radicais sobrevivessem. Alea Jacta Est.”

O assassino foi descrito como sendo um homem inteligente, articulado, que lia muitíssimo e que não bebia, nem fumava ou tomava drogas. As suas palavras sobre as feministas são as que tantas de nós escutam diariamente nas redes sociais. Não surpreendem. Destilam ódio, é certo, mas estamos habituadas a que sejam “só conversa” de homens frustrados, sem consequências. Errado, estas palavras têm consequências.

Há 30 anos este discurso fez 14 vítimas mortais, do sexo feminino – o seu principal pecado. O segundo foi ousarem penetrar território masculino sagrado, usurpando conhecimento e prestígio profissional há séculos reservado para o outro sexo. Marc Lépine acreditava que não tinha sido admitido na École Polytechnique porque estas mulheres foram. E provavelmente estaria certo: a admissão depende dos resultados académicos e aquelas jovens mulheres superaram os seus pares masculinos. Se o instituto vedasse a entrada de mulheres, o assassino teria possivelmente sido admitido.

Maryse Leclair foi uma destas mulheres, estava no topo do ranking dos melhores alunos do instituto, e o seu pai era diretor de relações públicas da polícia de Montreal. Sem saber que sua filha estava entre as vítimas, ele falou à porta da escola e prometeu à imprensa que iria entrar e depois relatar o que viu. Foi ele quem encontrou o corpo da sua filha.

A ousadia de Maryse e das suas colegas ao escolherem estudar engenharia foi visto como um agressivo acto de militância por parte dessas mulheres. E Marc Lépine reagiu. Ele não conseguia encontrar a tal “alegria” que procurava num mundo onde as mulheres fossem livres, autónomas e engenheiras. As feministas não reagem: nós limitamo-nos a escrever, falar, no máximo a ir para a rua e falar mais alto. As feministas não pegam em armas. Mas este terrorista não era uma mulher e muito menos uma feminista.

O marido de outra das vítimas, assassinada 3 meses e 3 semanas depois do seu casamento, não comprou a versão “saúde mental”. Ele acredita que a “influência externa – talvez amigos, o seu pai – o tenham tornado muito agressivo com as pessoas, especialmente as mulheres.” As feministas concordam, sabemos que os homens não nascem homicidas, nem agressores, nem violadores, nem pedófilos. Sabemos que Marc Lépine era de facto um “erudito racional” e soubemos mais tarde que o seu pai era um agressor, que espancava a mulher e os filhos regularmente, que proclamava a inferioridade das mulheres e exigia a submissão da sua mulher, enfermeira que havia sido freira. A irmã do assassino morreu aos 26 anos, sozinha, com uma overdose de droga. Cada irmão lidou com o trauma da sua infância e com a violência que viveram de formas diferentes, mas a causa é a mesma e não é saúde mental. A violência é ciclíca e a misoginia é contagiosa.  

Conhecer o passado deste terrorista não visa criar simpatia pelo mesmo mas demonstrar como a raiva gera raiva e quão perigosas são as palavras de ódio. 14 mulheres foram condenadas à morte e executadas por causa do efeitos dessas palavras. Foi um acto político e um ataque anti-feminista – como o próprio assassino confirmou.

Muitas feministas celebram as pequenas vitórias como sermos a maioria nas faculdades de medicina ou mais de 10% nos conselhos de administração, o dobro dos 5% da primeira década de 2000 (como se fosse muito diferente ter 90% de homens nesses cargos em vez de 95%). Celebram desde há décadas a entrada de mulheres nos cursos STEM, o progresso que é termos engenheiras civis ou de materiais.

As feministas radicais são mais exigentes: contamos o número de mulheres e crianças assassinadas, violadas e agredidas e só quando estes números negros decrescerem significativamente é que falaremos em progresso. Ainda estamos muito longe disso.

Continuamos a sentir a violência na pele, exponenciada pelo backlash da nossa libertação. Quanto mais as mulheres reclamam, exigem e lutam, maior a violência sobre si, maior e mais raivosa a força machista a puxar-nos para baixo, para a cozinha e para a cama – o habitat que o patriarcado determinou para nós. E não nos iludamos: a maioria dos homens quer manter o status quo. Não estão dispostos a abdicar de milénios de existência privilegiada.

A única forma de reduzir as estatísticas de violência é fazer exactamente o que estas 14 mulheres fizeram e morreram por isso: é reclamar a nossa liberdade, espaço e dignidade. É dizer não ao destino que o patriarcado nos reservou. É escolher livremente o que queremos estudar, fazer, trabalhar, com quem queremos viver, quem queremos amar. É desafiar diariamente este status quo obsoleto.

Nas palavras comoventes de Andrea Dworkin, “cabe a cada uma de nós ser a mulher que Marc Lépine queria matar. Devemos viver com essa honra, essa coragem. Devemos expulsar o medo. Devemos continuar. Devemos criar. Devemos resistir.”

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