Já alguma vez teve um parto sozinha no meio da rua?

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O tão recente caso de uma mulher que colocou o seu filho recém nascido no ecoponto (um horror, penso que aqui todos concordamos) fez-me regressar a um livro que é muito útil para muitas situações da vida das mulheres – ainda que geralmente por causa de violência sexual, abusos sexuais a menores, violência doméstica, e não abandono de filhos em contentores de lixo. O livro está cheio de marcadores coloridos, sublinhado, anotado, manuseado, mas continua imprescindível. Trauma and Recovery, The Aftermath of Violence – From Domestic Abuse to Political Terror, de Judith Herman, psiquiatra e professora da muito prestigiada Harvard Medical School.

A mulher que abandonou o filho – ainda com restos de cordão umbilical – era sem abrigo, muito nova (22 anos), imigrante, não teve cuidados médicos durante a gravidez, teve o seu parto sozinha no meio da rua. Não consigo conceber o que é ser sem abrigo e descobrir que se está grávida. O desespero e o desalento devem ser difíceis de conter. A situação de confusão, também. A vergonha, idem. E ter um parto sozinha, num qualquer recanto do exterior de um edifício, é uma experiência que está para lá de qualquer patamar mínimo de humanidade. É, em si mesma, uma experiência desumanizadora e degradante e humilhante. Não é uma vivência de que alguém saia incólume.

Ora deixo aqui algumas ideias de Trauma and Recovery, a que juntei mais outras leituras e escritos sobre o tema ‘trauma’, que podem ajudar a temperar julgamentos sobranceiros, apressados e próprios de turbas justiceiras da mulher que fez um ato horrível.

1. A situação de grávida, sem abrigo, parto só no meio da rua é sem dúvida aquilo que poderemos chamar de evento traumático. Um evento traumático é um evento que envolve perigo, muitas vezes perigo de vida, e envolve uma absoluta experiência de falta de controlo sobre a própria vida: é outra pessoa que nos força a atuações ou situações que não escolhemos, é a natureza ou os sobressaltos políticos ou acidentes vários (dos primeiros casos reportados de trauma relacionavam-se com os acidentes de comboio dos inícios da ferrovia no século XIX) que nos levam em ondas avassaladoras, é uma circunstância de vida em que estamos à mercê dela e sem capacidade de reação ou de a contrariar (como um luto da morte de alguma pessoa muito amada, ou viver uma gravidez desamparada sem emprego, família, casa ou comida). Durante os eventos traumáticos os comportamentos que as pessoas têm são, com frequência, diferentes dos que teriam quando os circuitos cerebrais não estão inundados de químicos produzidos em resposta ao evento traumático. É por isto que tantas vezes as vítimas de violência negam até para si próprias a evidência de que foram vítimas, as mulheres violadas congelam em vez de lutar, as crianças não contam o que lhes é feito.

2. A vivência de trauma – que é a reação psicológica ao evento traumático, consequência de alterações na química cerebral (o trauma deixa de facto uma cicatriz no cérebro), chegando a ser uma doença debilitante que pode inclusive levar ao suicídio – não depende da robustez psicológica de cada um (ainda que a magnitude da reação dependa), mas sim da existência do evento traumático. Não vale a pena exigir grandes gestos a uma mulher que pariu na rua, que não tinha ninguém, de quem ninguém quis saber, que vivia na rua. Ninguém sairia incólume dessa situação.

3. Um factor que é em si mesmo traumatizante é a absoluta certeza de que se é descartável – que quem, em última instância o estado, deve cuidar de nós, não quer saber se vivemos ou morremos, como se não fôssemos humanos e não contássemos. Esta sensação de traição dá ela própria azo a uma reação traumática. Não custa imaginar que aquela mulher de 22 anos se sentiu completamente só e abandonada – pelo pai da criança, pela comunidade onde esteve inserida, pelos serviços sociais portugueses, pelo seu país de origem e pelo seu país de destino – e sem contar absolutamente nada, sem nenhum valor.

4. Em sentido oposto, algo que menoriza o impacto do trauma é a existência, antes, durante e depois do evento traumático uma rede de contactos sociais significantes. Mas esta mulher não tinha nenhum. E a experiência de trauma tem este efeito de corte: corte das relações, corte das redes sociais em que se está inserido, corte dos países (mudar de cidade ou até de país, ou de grupos sociais, ou de profissão é normal após um evento traumático). Não é maldade, nem desafeto, é simplesmente haver algo que se parte e tem de ser reparado. O corte entre esta mãe e este bebé deve ser lido também por aqui.

Da minha parte, a uma mulher que deixámos viver, grávida, como a uma besta não se pode exigir o mesmo comportamento que a uma mãe que teve uma gravidez e parto rodeada de amor, segurança, conforto, cuidados médicos. Acrescento a isto a carga hormonal da gravidez e do parto e pós-parto, que acentuam todos os fatores elencados. Claro que deve haver censura social e penal pelo ato de abandonar o bebé, tal como devemos ser capazes de compaixão pela circunstância degradante e animalesca da miúda de 22 anos.

Há quem, maldosamente, compare esta compaixão com as desculpas escabrosas que Neto de Moura fez a propósito do marido e amante que atacaram uma mulher com uma moca coberta de pregos, ou noutros casos judiciais infames. Por mim, não sei a saúde mental de quem faz a comparação. Mas sei que a ética de quem compara o ato de uma mulher em pleno evento traumático agudo, em circunstâncias inimagináveis, com a decisão planeada (às vezes repetida) de um homem (munido apenas de maldade e sentimentos de posse e vingança) punir uma mulher por esta fazer uso da sua liberdade de se relacionar sexualmente e afetivamente com quem entende – é demasiado rasteira para ser devidamente qualificada aqui.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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