Este texto deveria ter sido escrito antes, mas não foi. As palavras nem sempre me saem com facilidade quando é para falar de um acontecimento que me marcou e marcará para sempre. A inevitabilidade de lidar com o momento da sua morte, misturada com mais mortes, a benção da sua vida misturada com a minha, o sussurro da morte que vem ao meu ouvido dizer-me: quem manda sou eu. Um brinde à vida. À do João. Que tanta vida me deu. Como se eu fosse uma boneca de corda.
Dizia-me, a rir, soltava uma gargalhada daquelas que lhe estavam presas nos olhos: “Saíste-me cá uma feminista”. Sempre que o ouvia dizer isto, de seguida, fdava-me um beijo na testa.
O João era luz.
O João tinha sempre uma palavra de conforto.
O João foi uma grande perda, para a família, para os amigos, e para Portugal.
Acho, passados 6 meses, que nenhuma outra perda fez Portugal perder tanto.
O entusiasmo. A vida. O fogo de artifício que todos à sua volta sentiam.
“Tens medo de quê?”- perguntavas-me tu.
“De todos, acho eu.”
“Tens medo de falar para mim?”
“Claro que não. Para ti não tenho.”
“O que importam os outros se nem os conheces?”
Tudo quanto dizia era inspiração. Tornava maiores todos quanto se abeiravam dele. Por isso ficamos tantos a chorar. Ralhava comigo por não aproveitar a vida. Sei lá eu como se aproveita a vida! Era o meu boost. Acho que ainda é, mas agora, inevitavelmente, faço menos coisas. Era o meu boost de auto-estima. A seu lado todos tinham motivação para ser melhores. Odiava que lhe dissesse isto, mas já não quero saber. Também já não ouve.
A vida é assim, dizem-me. Eu já devia saber, mas ainda não sei. Quis a vida ou o destino, ou o acaso, que a despedida fosse no dia de anos da Maria. “Eu estive feliz, não te preocupes.” Os anos de um filho têm importância para nós. Para o João também tinham. Não importa estar ou não num sítio onde ele já não estivesse. Até nem gostava de despedidas. Há qualquer coisa estranha nas despedidas.
O ser empreendedor corria-lhe nas veias. Empreendia em projectos, em ideias, em pessoas. E vivia feliz com isso. Tinha tudo para fazer ainda. Mas a morte não se compadece com agendas tecnológicas e empreendedoras. A morte vem para bagunçar a vida dos que cá ficam. Resta-me o consolo de o João não ter sofrido com essa morte.
“Dizias-me, vezes sem conta, que não importava o que os outros pensavam, mas que se importasse, gostavas muito do meu sorriso. E eu gostava muito do teu. Nunca te disse. Nestes 6 meses cresci muito, a vida fez-me crescer, a tua ausência fez-me crescer. Eras a minha bengala. A pessoa com quem podia dizer os maiores disparates, podia ser fraca, podia ser o que me apetecia ser. Sem medos, porque tu estavas ali.”
Para ti.
Por tudo o que em mim há de ti.
Como um sopro. “Morreu o João”. Senti um arrepio. Sabia qual era o João. Soube, às 9 da manhã, que João era. Ouvi-o, no sábado, a combinar um almoço para quinta-feira. “Almoçamos no Martim Moniz, não te preocupes”. Depois, foi como um estalo. “Já não almoçamos mais”, ainda o ouvi dizer. Faltavam 2 dias para quinta-feira. A seguir, foi como uma tareia, acho eu, chorei. Chorei tanto, João. Chorámos. Todos.
Imagino-o sentado em cima de uma nuvem, de computador em cima das pernas, a organizar uma conferência. Porque, honestamente, se não há wi-fi, routers e espaço para a inovação, ele enlouquece. Éramos tão diferentes, e ele sabia. Éramos tão distantes, e ele sabia. E eu sabia. Gostávamos tanto um do outro. E nós sabíamos. Como um sopro. A voz era como um sopro. O riso era como um sopro. Falava da mesma maneira que sorria. Olhava para mim da mesma maneira que sorria. Inteiro. Em tudo o que fazia. Punha o mesmo empenho em tudo. E era isso que fazia dele único.
Conheci o João em 2011, era ele adjunto de Sócrates para os assuntos regionais. Nunca pensei que aquela amizade que nasceu ali, em terras ribatejanas, fosse interrompida tão cedo. Chovia, e eu vi-o chegar com outros membros do governo. Todos de chapéu de chuva, menos ele. Correu do carro para o recinto, na esperança de não se molhar. Eu estava no evento. A minha ligação ao PS tinha começado há pouco tempo, e eu ainda estava a conhecer o partido. Sentou-se ao meu lado. Longe dos outros elementos do governo. Olhei para ele com cara de estranheza, e ele disse-me a rir: “Vê-se melhor daqui”. O sorriso dele é das coisas mais marcantes que já me aconteceram. Nunca o vi de outra forma. Mesmo nos piores dias, tinha um sorriso na cara. Tantas saudades que tenho do sorriso! A maneira descontraída dele cativou-me. Creio que ainda não conheci mais ninguém tão descontraído como ele.
Nestes 8 anos fez-me crescer. Deu-me mais do que eu dei a ele. Só o vi preocupado na altura em que se demitiu das funções de Secretário de Estado. Com um ar pesado, apareceu-me, forçou um sorriso, e logo caiu outra vez no ar transtornado com que ficava sempre que este assunto vinha à baila. Almoçámos no Rio Maravilha, no Lx Factory, vezes sem conta. Gostava tanto daquele lugar. Dizia-lhe tanto. Punha as minhas mãos no fogo por ele. Morreu sem ver o seu nome limpo de todos os problemas. Quando se demitiu, vi-o a crescer. Ganhar outra cor. “Tenho tempo outra vez”. Enchia uma sala. Com o brilho dos seus olhos. Com o som da sua gargalhada. Pura. Genuína. Cheia de vida.
“Mais vale feito que perfeito”. Era avesso à ideia de que tudo tinha de estar perfeito para se mostrar. Era, apesar de tudo, a pessoa mais perfeita que conheci naquela tarde chuvosa, em 2011. Era o meu motor de arranque. Se estivesse triste, com dúvidas, com inseguranças, com dificuldades. Era a minha força e era ele que tinha o acesso mais rápido, um género de via verde, para o meu sorriso. O João Vasconcelos foi, para mim, e sabendo que sou suspeita no que toca a avaliar o trabalho dele, o maior impulsionador do empreendedorismo em Portugal. Todos ficámos a perder com esta sua súbita partida. Ele era, sem dúvida, uma via verde para mais gente.
O João é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Arrisco a dizer que o João é uma das pessoas mais importantes de toda a gente que conheceu. A serenidade, a paixão, o empenho, a voracidade, o carinho que punha em tudo…Todos os seus projectos, tudo aquilo que ele amava fazer…A compaixão, a vontade em mudar este país, a preocupação com o social, os sonhos que conseguiu realizar. Para quem o conheceu de perto, como eu, dói mais. Não ter o João, não ter as palavras de incentivo do João, não ter o sorriso apaziguador, não ter a motivação, não ter a garra, não ter a força.
O João era um farol.
Ainda é.
O amor que ele deixou.
Pessoas assim, importantes, nunca morrem, dizem-me.
Ainda o sinto aqui.