Um (misturado) Dia de Chuva em Nova Iorque

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Um Dia de Chuva em Nova Iorque é daqueles filmes que Woody Allen deve ter realizado – e escrito o argumento – sem qualquer esforço ou sobressalto criativo. Não é um Roda Gigante, o seu filme anterior, uma viagem no tempo a Coney Island, cómico, negro, sinistro, enternecedor, com personagens de várias formas aprisionadas, carregado de sombras da natureza humana, e com uma soberba Kate Winslet.

Não, Um Dia de Chuva em Nova Iorque é território conhecido de Woody Allen. A upper class novaiorquina do Upper East Side, o rapaz excêntrico e ligeiramente desadaptado (no meio da sua vida de filho do privilégio estudando numa universidade do upstate New York) que faz de projeção de Woody Allen (ou do que Woody Allen gostaria de ter sido), a rapariga do Midwest terra a terra e menos apreciadora dos devaneios românticos e intelectuais dos misfits endinheirados da costa leste, os diálogos espirituosos, os artistas atormentados, um ator de cinema famoso e mulherengo. Há, claro, os encontros, desencontros e reconfigurações amorosas – afinal o filme está catalogado como comédia romântica. Pequenas intrigas e questiúnculas familiares. Uma reconciliação com uma cidade e um modo de vida.

É um Woody Allen em velocidade de cruzeiro, entretendo-nos competentemente com os instrumentos que lhe são mais familiares. É leve, solar – apesar da chuva. Tenho lido ferozes críticas ao filme – e entendo-as. Nem sequer devido às acusações de abuso sexual de Allen à filha Dylan Farrow, que surgiram por alturas do lançamento deste Dia de Chuva e levaram a Amazon a cancelar a distribuição e mais financiamento para mais filmes. (Nos Estados Unidos não vai ser distribuído.) As objeções são mesmo à obra. Este último Woody Allen não nos traz temas desafiadores, personagens que nos atormentam ou comovem, inovações criativas. É um entretenimento. De certa forma, e porque tem um tanto de anacronismo, faz lembrar as Jóias da Castafiore, de Hergé: nada se passa, quase não há história, mas vamos sendo conduzidos de cena em cena apreciando o talento do autor.

E, no entanto, não deixa de ser quase punição bíblica as más críticas ao filme coincidirem com o momento pós ressurgimento das acusações de abuso sexual na era do #metoo (as acusações são conhecidas há décadas). Bem como o ter-se finalmente escapado o talento extraordinário, ficando somente a capacidade quotidiana de entreter. Também nos traz à discussão a censura social que deve ser aplicada aos agressores sexuais – e, pessoalmente, inclino-me a dar mais crédito a Dylan Farrow que a Woddy Allen. Aplicamos aos próprios ou à sua obra também? Iria eu ver o filme se não tivesse já Woody Allen sido castigado com a perda do mercado americano? Estando permanentemente caído em desgraça? (Muito provavelmente não.)

Em todo o caso, o filme provocou-me uma boa dose de saudades de Nova Iorque e da vida cosmopolita, com as exposições no MoMA, os John Singer Sargent no Metropolitan, os eventos sociais com dress code formal. Infelizmente a presidência de Donald Trump retira-me, logo de seguida, a vontade de começar a planear uma visita a uma cidade tão sedutora. Resumindo, para o tempo de chuva ocasional que também por cá temos, já com dilúvios e cântaros, Um Dia de Chuva em Nova Iorque vai bem para filme de outono, e até aquece.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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