O feminismo é questão de direitos humanos e liberdades básicas, não de luta política.

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O feminismo (perdoem-me por constatar evidências, mas é só para um preâmbulo ao resto do texto) pretende assegurar igualdade de direitos, de liberdade e de oportunidades entre homens e mulheres. É uma questão de igual acesso a todas as áreas e benesses que a sociedade põe à disposição dos indivíduos. É uma questão de não suprimir, através de legislação ou de forças sociais ou culturais, as oportunidades das mulheres, sejam profissionais, sejam de crescimento e realização e felicidade pessoal. É uma questão de não vedar às mulheres a liberdade de movimentos, de expressão, o direito a movimentar-se e a viver em segurança (e livre de violência doméstica e violência sexual). É uma questão de não degradar os corpos das mulheres com explorações económicas que as traumatizam, violentam, matam. Por aí fora. Donde, é algo totalmente positivo, porque não é contra ninguém, não é contra os homens – é só contra as grilhetas que o mundo ainda coloca em quem nasceu com os cromossomas xx (mas também em quem nasceu com os cromossomas xy, que os sistemas patriarcais não são danosos apenas para mulheres). Os métodos de concretizar esta igualdade de direitos, liberdades e oportunidades podem – devem – ser debatidos (por quem, de facto, tenha esta causa como sua, não dos hipócritas que adoram igualdade desde que tudo fique como está ou regresse a 1950), mas o objetivo permanece.

O feminismo deve estar numa categoria semelhante à dos direitos humanos: ser prévio às ideologias e à luta política e partidária. Devia fazer parte do quadro de valores de qualquer ideário político que se considere aceitável para uma sociedade civilizada.

Claro que o feminismo pode ser objeto de luta política. Desde logo porque há – e se vêem escancarados, sobretudo nos crescentes extremos da direita – quem pretenda de facto restringir as mulheres a um papel tradicional que as impeça de uma participação igualitária no mercado de trabalho e na política. É objeto de luta política nos (crescentes) meios que esperam que a radicalização e o simplismo e o ódio lhes tragam votos. Esses meios partidários devem ser combatidos, denunciados e batidos – por muitas razões, que não só a posição ultramontana em relação ao feminismo.

Para todas as outras ideologias, a igualdade de direitos, liberdades e oportunidades das mulheres e homens – i.e., o feminismo – deve ser parte do conjunto comum de valores civilizacionais.

Neste sentido, para mim, consigo estabelecer pontes com feministas, ou aliados do feminismo, mulheres ou homens, que venham das mais variadas áreas políticas. A participação política das mulheres é assunto para todas as forças políticas. O combate sem tréguas à violência doméstica e à violência sexual e a toda a violência sobre mulheres é tema para todas as forças políticas. A igualdade de rendimentos entre homens e mulheres – desde logo porque é uma condição da liberdade das mulheres – é assunto para todo o arco político civilizado. O direito a movimentarmo-nos em segurança está a cargo do BE até ao CDS. O direito a vivermos num mundo construído (fisicamente e socialmente) para toda a humanidade, em vez de apenas para a metade masculina, é obrigação de todos os que almejam o bem comum.

Os temas feministas não podem dividir esquerda e direita, nem partidos. Sempre elogiei quem estava muito distante de mim por medidas e propostas sobre violência sexual – o BE, por exemplo; regra geral, é assunto a que dedicam atenção e da forma correta. No outro dia, a jornalista Alexandra Tavares-Teles ligou-me para pedir umas impressões sobre Joacine Katar Moreira para Notícias Magazine. Disse-lhe que JKM, de um partido onde não votei, me poderia representar muito bem nas questões de feminismo. E isto ainda antes de Joacine se declarar feminista radical (não, não é ser-se extremista), corrente que agrada a muitas aqui na Capital Magazine.

Por isto mesmo, escandalizam-me bastante as tentativas de espartilhar o feminismo segundo linhas ideológicas partidárias. Este site foi criado, entre outros objetivos, para assegurar que à direita não existe falta de voz feminista, mas foi de início um site agregador de várias posições políticas. Sempre esteve claro que lutas partidárias ficariam fora deste site e as e os autor@s somente tinham de ter identificação com a causa do feminismo.

Choca-me quando feministas de esquerda pretendem ligar o feminismo a uma luta anti capitalista. É certo que alguns regimes comunistas apostaram na educação e no papel da mulher como trabalhadora e construtora da revolução, e que retiraram alguns espartilhos sociais mais ligados ao moralismo católico. Porém, estiveram muito longe de serem regimes feministas; na verdade, continuaram ferozmente patriarcais.

Claro que se pode ser feminista e anticapitalista. Não tem lógica, no entanto, que todo o feminismo seja anticapitalista. Não tem sentido e é só mesmo uma forma de criar divisões e colocar ideologias acima das lutas feministas. Obviamente sendo o feminismo a defesa de direitos, liberdade e oportunidades de todas as mulheres – de todas as cores, classes sociais, orientações sexuais -, o feminismo também defende as mulheres negras, pobres, lésbicas, havendo cruzamentos com outros movimentos. Mas esses movimentos, lá está, também não têm obrigatoriamente de ser anticapitalistas.

Não lembra a ninguém exigir que os direitos dos gays – porventura o grupo mais consumista do mundo inteiro – obriguem a uma associação com o anticapitalismo. Mas para as mulheres? Vamos lá boicotar isto, exigir um purismo absoluto e inalcançável, a ver se nada muda e se ficamos como estamos. Afinal as mulheres não contam tanto quanto as lutas ideológicas. Se querem igualdade salarial têm de levar com a socialização dos meios de produção. Really?

Também me choca que, em setores à direita não tão pequenos assim, o feminismo e os direitos e liberdade e oportunidades das mulheres sejam deitados para fora do camião sempre que isso permita ataques à esquerda. Ou que alianças com a esquerda em assuntos de feminismo sejam malvistas. Revela que em parte da direita não há valores, não há princípios, há simplesmente o objetivo de atacar um inimigo político. Não defende nada, só deseja destruir. Não é nada de novo, pelo contrário, tenho clamado contra este desagradável hábito da direita há bastante tempo, mas escandaliza-me que os valores de que se prescinda tão facilmente sejam relacionados com mulheres. Fica escancarada uma menorização dos assuntos feministas que (outra vez) choca-me. Novamente, as mulheres contam menos que as brigas ideológicas.

Tal como as alterações climáticas não podem estar reféns de questiúnculas políticas, também o feminismo e os direitos, liberdades e oportunidades das mulheres não podem ficar à mercê de guerrilhas partidárias. E diria o mesmo para o racismo, os direitos LGBT e tudo o que se relaciona com direitos humanos e com a dignidade das pessoas. Pela minha parte, é este o meu compromisso. O feminismo e os seus objetivos estão acima de qualquer luta partidária e são mesmo prévios à disputa política. E apoio quem quer que, na política, aprofunde a vivência de igualdade de direitos, liberdades e oportunidades entre homens e mulheres, à revelia da inclinação ideológica ser mais ou menos próxima da minha.

 

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