“Estamos grávidos!“ Foi assim que Ricky Martin, cantor latino de sucesso e assumidamente gay, anunciou que ele o marido receberão o 4º filho em breve.
Tal como os restantes três, também este bebé foi gerado através de uma “barriga de aluguer”. Barriga…sabemos bem que não é só uma barriga, pois não? Afinal homens também têm barriga, mas a deles não consegue gerar um feto. Sabemos pois que se trata de uma mulher, não sabemos? Mas dizer “mulher de aluguer” não é bonito, pois não? É demasiado gráfico, revela que é um ser humano do sexo feminino que está ser alugado como se de um objecto se tratasse. Chamar “barriga de aluguer” ajuda a desumanizar a mulher e a neutralizar o que é um claríssimo acto de exploração e mercantilização humana.
A comercialização de órgãos humanos é ilegal em toda a parte. Porque razão cinco países legalizaram a venda de órgãos humanos se forem femininos (reprodutores)? E que países: EUA, Rússia, Ucrânia, Geórgia e México. Todos com elevadas taxas de femícidio e de violência contra mulheres. Países onde a desumanização e sexualização de mulheres e raparigas é comum e culturalmente aceite. Vender um rim é um crime grave, porque homens também têm rins, mas vender um útero é legal e aceitável, porque apenas os “seres inferiores” possuem úteros. É esta a lógica por detrás da legislação destes cinco países que destoam tão ostensivamente do resto do planeta nesta temática.
A maioria dos países proíbe expressamente a maternidade de substituição comercial, outros não possuem legislação específica sendo o vazio legal aproveitado por alguns, especialmente em países como a India, o Quénia ou a Nigéria. Neste último país, uma “fazenda de bebés” acabou de ser desmantelada pelas autoridades: mulheres, algumas menores de idade, raptadas, violadas, presas durante as gravidezes para verem os seus bebés arrancados dos seus braços e vendidos, pouco depois de darem à luz. E violadas novamente para engravidarem outra vez e repetir-se o seu martírio. Porque é esta outra das vantagens dos úteros face aos rins: um rim só se vende uma vez, já um útero pode ser reutilizado.
Nas fazendas de bebés é fácil apreender o horror desta prática: as mulheres são a máquina na linha de montagem e os bebés o produto, a mercadoria a ser comercializada. Mas em que é que este caso se distingue da maternidade de substituição comercial? Pelo facto de as mulheres não serem violadas nem presas serão elas livres? O processo e resultado final é o mesmo: mulheres como linhas de montagem, bebés como mercadoria arrancada da máquina que a gerou para se iniciar novo ciclo de produção.
Na Nigéria, a violação e sequestro são agravantes do horror, mas o horror é o mesmo: a compra e venda de órgãos e de seres humanos. Não há outra forma de olhar para a maternidade de substituição, é disto que estamos a falar.
E para quê? Para quem? Quem beneficia deste horror? Pessoas privilegiadas, com poder económico, que acreditam existir um direito à paternidade. Que confudem o direito de uma criança a ter uma família com um direito seu a terem uma criança.
Sejamos claros: não existe um direito à paternidade. É um privilégio que não está ao alcance de todos, não é um direito.
Lidei com a infertilidade durante dois anos e acompanhei de perto vários amigos com o mesmo problema. Sei como é sentir a dor de desejar ser mãe e ver o período aparecer mês após mês, os tratamentos falhados, os testes de gravidez negativos, o endividamento para pagar só mais uma FIV. Sei o que custa, sei como esse desejo nos pesa e corrói. Mas também sei que não tenho um direito a ser mãe. Vivi a gravidez das minhas filhas como vivo a sua maternidade: com gratidão profunda pelo privilégio de poder ser a sua mãe. Elas não me pertencem. E os direitos aqui são todos delas: são elas que têm o direito a ter uma família, uma casa, educação, saúde, amor. A mim e ao pai compete-nos dar-lhes isso tudo, é a nossa obrigação cumprir os direitos delas. Não há qualquer inversão nos sujeitos de direitos e obrigações.
Não nego o amor que a maioria das pessoas que recorre à maternidade de substituição tenha pelos bebés que perfilham. Mas nego o amor que todas elas tenham pelas mulheres que usaram e exploraram para esse efeito. Não é possível separar os dois porque estão ligados por um cordão mais forte que o umbilical. Não existirá bebé sem a exploração da mulher e esse preço é demasiado alto a pagar. Mesmo por quem tenha milhões como Ricky Martin, ou Nicole Kidman, ou Cristiano Ronaldo (um dia escreverei sobre o paralelismo entre comprar um ventre e violar uma mulher).
Urge destruir esta nova categoria de direitos artificiais, inexistentes, que pessoa alguma detém, mas que a nossa sociedade narcissista e deficiente de empatia insiste em propagar como válidos: não existe o direito a ter um filho como não existe o direito ao sexo. Não podemos obrigar, forçar, coagir, pressionar nem explorar as necessidades financeiras de outrém para nos gerarem uma criança ou para nos darem sexo. Chega a ser desconfortável ter de escrever algo que é tão básico e óbvio.
Acabei de ver esta notícia: a um homem autista foi-lhe reconhecido o direito ao sexo. Uma juíz sensibilizou-se com os argumentos do homem “que deixou bem claro que deseja desesperadamente encontrar uma namorada com quem possa ter um relacionamento, está ansioso por ter uma parceira sexual e acredita que as restrições atuais envolvem uma interferência injusta e ilegal em seus direitos básicos à privacidade e à vida familiar “. Onde se lê “direito básico à privacidade e à vida familiar” deverá ler-se sexo. Aparentemente, só os homens são sujeitos destes novos direitos; as mulheres são objectos. O exercício do “direito” deste homem implicará a violação potencial do direito de uma mulher à sua dignidade humana e autodeterminação sexual – direitos estes existentes e constitucionalmente consagrados. Esquece-se a juíz de especificar ou mesmo nomear a mulher que deverá abdicar dos seus direitos fundamentais em favor dos direitos artificiais deste homem, concerteza não será ela uma das voluntárias. Porque, convenhamos, o perfil das mulheres destinadas a preencher estes “direitos” – quase sempre exercidos por sujeitos do sexo masculino – teima em ser o mesmo: pobreza/insuficiência económica, baixo rendimento escolar, vítimas de abuso sexual, maus-tratos ou negligência na infância/adolescência. Uma coincidência, certamente.
Nesta altura da discussão costuma entrar o argumento consentimento: a mulher consentiu. As mulheres tendem em consentir muita coisa, algumas bem estranhas e até contra-intuitivas que desafiam o nosso instinto de sobrevivência, a nossa saúde e bem-estar. Quiçá é o nosso cérebro rosinha, que nos torna mais dóceis e empáticas, como os conservadores libertários adoram espalhar? (Só para repor a verdade, deixo aqui um recurso recente que desmistifica por completo a falsa teoria dos cérebros sexuais. A resposta é: cada cérebro é diferente e isso não tem a ver com os nossos genitais).
Voltando ao consentimento, a análise do mesmo revela-nos quão insignificante e vazia é a afirmação “a mulher consentiu”. Infelizmente existem muitas mulheres desesperadas que venderiam um dos seus rins num segundo, por € 100’000.00. Acaso nos atreveríamos a dizer que nesta situação a mulher consentiu? Porque o fazemos quando se trata de vender o seu útero? Um órgão excretor é mais valioso que um órgão reprodutor?
Temos de ser honestos e concluir que não há diferença. Estamos a falar de um órgão humano e as mulheres são seres humanos, a venda do seu útero tem de estar sujeita à mesma proibição de venda dos seus restantes órgãos.
E temos de ser fortes e aceitar que nem todos nós poderemos ter filhos biológicos. A medicina já faz muitos milagres mas nem todos os casos podem ser resolvidos. Para essas pessoas, há opções como a adopção, o acolhimento, o voluntariado. Quem tem amor para dar encontrará sempre formas de o fazer. Há, infelizmente, muitas mais pessoas a precisar de o receber que disponíveis para o dar.