
(Amanhã, 1 de outubro, serão festejados os 70 anos da fundação da República Popular da China por Mao Zedong em 1949, depois de vencer a guerra civil aos nacionalistas de Chiang Kai-Shek. Tendo eu feito uma dissertação de mestrado sobre livros de memórias, escritos por mulheres expatriadas, do período da Revolução Cultural Chinesa, e tendo o comunismo maoista uma relação peculiar com os direitos das mulheres e com a emancipação feminina, trago aqui partes da minha dissertação sobre este assunto. Houve cortes, junções, adaptações (inclusive nas referências bibliográficas), acrescentos para ficar mais entendível sem todo o contexto histórico e literário presente no resto da dissertação e mais no tom de um artigo da Capital Magazine. Espero que apreciem, afinal é sempre curioso analisarmos como os vários regimes se relacionam com metade da sua população.)

A revolução comunista chinesa (e, dentro dela, a Revolução Cultural (RC)), iniciada em 1949 com a criação da República Popular da China, teve como uma das bandeira a libertação feminina, que se concretizou no incentivo à entrada das mulheres no mundo laboral fora da esfera doméstica. Nesse sentido foi, até, precursora dos movimentos feministas ocidentais da segunda metade do século XX. A visão maoista sobre o feminismo pode ser resumida na frase atribuída a Mao Zedong “as mulheres conseguem segurar metade do céu” (“funu nengding banbiantian”), que, segundo Xueping Zhong (no capítulo que escreveu para o livro Words and Their Stories, Essays on the Language of the Chinese Revolution), pretendia afirmar a igualdade entre homens e mulheres e colocava o enfoque da libertação feminina na entrada das chinesas no mercado de trabalho e na contribuição efetiva para a construção do socialismo chinês. O regime comunista tinha, assim, uma visão inteiramente nova (face ao período imperial e republicano de antes de 1949) do papel das mulheres e que levou a grandes alterações no estatuto das chinesas.
O período da RC (1966-1976), em concreto, aprofundou em alguns pontos a mensagem feminista. Como referem Macfarquhar e Schoenhals em Mao’s Last Revolution, os direitos das mulheres foram centrais na campanha pi Lin pi Kong de 1974 – que pretendia repudiar o caído em desgraça marechal Lin Biao e, ele mesmo, o filósofo Confúcio, de facto criador de uma mensagem bastante hierárquica e patriarcal. E, em 1975, refundou-se a Federação das Mulheres, organismo dedicado à condição feminina que fora encerrado no início da RC. As autoridades de algumas províncias intensificaram os esforços para parar os raptos e vendas de mulheres, bem como para terminarem os casamentos forçados, os abusos sexuais e a violência contra as mulheres. E, dentro da expansão de liberdade que a RC trouxe aos jovens chineses, também as raparigas sentiram este período como uma oportunidade inigualável para participarem na revolução – e na vida – como nunca havia sido possível às chinesas anteriormente. As raparigas participaram ativamente nos grupos de Guardas Vermelhos (e também na violência: o primeiro assassinato da Revolução Cultural ocorreu numa escola feminina), puderam viajar sós ou com amigos, e foram para as zonas rurais onde tiveram de cuidar de si próprias e experimentaram uma enorme proximidade ao sexo masculino. E alguma alteração estes fatores provocaram na vida das jovens desta década, já que quando as escolas reabriram, a percentagem de mulheres em todos os níveis de ensino subiu significativamente.

De facto, a esfera de liberdade das raparigas chinesas durante a Revolução Cultural nunca tinha sido experimentada por nenhuma outra geração anterior, naquela sociedade patriarcal e protetora da castidade feminina. Quando no início da RC as escolas e universidades foram encerradas, os alunos ficaram sem nada que fazer, pelo que tiveram, em ambos os sexos, liberdade para deambular em atividades políticas cada vez mais ferozes e fora do controlo dos seus pais. A participação em comícios era obrigatória, nas atividades de contestação aos professores e ás autoridades das escolas e universidades. As raparigas escaparam assim à rotina que lhes impunha a presença apenas nas aulas ou em casa. Quando foi lançada a campanha Da Chuanliang em 1966 – em que os jovens viajavam gratuitamente para os locais santos da revolução comunista chinesa (o soviete de Jinggangshan, Beijing para participar nos gigantescos comícios com a presença de Mao, a aldeia onde Mao nascera, Xi’an, o local onde a Grande Marcha terminou,…) – raparigas viajaram sozinhas para todos estes locais, ou com grupos de amigas ou de amigos, num assomo de liberdade feminina impensável um ano antes. É certo que houve abusos sexuais, um surto de meningite dizimou muitos jovens (pelas condições imprestáveis de higiene em que se realizavam as viagens), porém, sem surpresas, estas viagens de adolescentes ou jovens adultas em total liberdade foram tempos felizes, livres, intensos, inesquecíveis para a maioria deles (raparigas e rapazes).
De seguida, quando a RC teve a sua curva negra e os jovens das cidades foram enviados para as zonas rurais (o que unanimemente detestaram), mais uma vez foi um tempo de liberdade para as raparigas chinesas. Os perigos era inúmeros (ver abaixo), no entanto tinham a liberdade de namorar, podiam relacionar-se com o sexo oposto (ou o mesmo, que existiram abundantes casos de amor homossexual) sem as restrições usuais da cultura chinesa, foram obrigadas a desenvencilharem-se longe da família hierarquizada tradicional chinesa. (A RC foi também tempo de liberdade para os rapazes, que, não sendo tão vigiados quanto as raparigas, eram também muito controlados na vida antes da RC.)
A política cultural da RC, sob a tutela de Jiang Qing (mulher de Mao), reforçou também a mensagem libertadora desta década. Dos oito espetáculos modelo que foram produzidos como paradigma da política de Mao para as artes, dois deles – os ballets A Rapariga de Cabelo Branco e O Destacamento Vermelho das Mulheres – ostentavam protagonistas femininas e continham uma mensagem fortemente feminista, desde logo ao oferecer imagens heróicas de mulheres e ao apresentá-las como exemplos a seguir [1].

Inevitavelmente, uma das partes mais traumatizantes da história da RC relacionou-se com a especificidade da experiência feminina do xia xiang (campanha que levou – de forma obrigatória – os jovens citadinos para as zonas rurais para viverem como camponeses). As raparigas que foram enviadas para os campos viviam dificuldades acrescidas, em constante sobressalto pela necessidade de tentar evitar os perigos que lhes eram reservados. Ao perigo de violação por camponeses (que apreciavam o pedigree das raparigas chinesas das cidades, que eram vistas como mais requintadas que as raparigas rurais), juntava-se o muito maior perigo de violações pelos oficiais do Partido Comunista Chinês – estes, pelo grande poder que tinham sobre a vida dos jovens, podiam contar com a grande probabilidade de as raparigas violadas não reportarem o sucedido. Depois da reforma do xia xiang em 1973, no seguimento de inúmeros protestos dos pais dos jovens ruralizados, vários quadros do PCC acusados de violação foram presos e até executados; contudo, como a causa do problema persistiu (o poder arbitrário que os membros do PCC tinham sobre as jovens), as violações mantiveram-se numerosas.
Também quando tentavam regressar às cidades as raparigas enfrentavam mais perigos, sendo comum os oficiais do PCC – ou os médicos que lhes passavam a recomendação de regresso à cidade por motivos de saúde (por vezes inexistentes) – exigirem em troca favores sexuais para emitirem a autorização de regresso.

Em boa verdade, o feminismo maoista era de uma espécie peculiar, já que ao considerar as mulheres iguais aos homens, as considerava não só iguais nos direitos, nas capacidades e nas potencialidades, mas considerava-as como se fossem, de facto, fisicamente homens. Os problemas ginecológicos das raparigas ruralizadas, por exemplo, eram frequentes. Uma vez que era dado às raparigas tratamento igual ao dos rapazes, e o mesmo tipo e carga de trabalho, muitas vezes estas tinham de trabalhar dentro de água mesmo quando estavam a menstruar.
Neste sentido, o feminismo maoista é tanto uma libertação como uma masculinização das mulheres. Nos dois ballets modelo, a libertação das protagonistas ocorre quando são eliminados os atributos da feminilidade e deixam de se relacionar com os outros como filha, mulher, mãe, esposa ou objeto de desejo. No fundo, a libertação feminina neste contexto é libertar-se de ser mulher para assumir a androginia – só neste estado se está emancipada e se pode tornar um agente da revolução socialista. É certo que em todos os espetáculos modelo os protagonistas (simultaneamente heróis) se destacam pela ausência de laços familiares relevantes, dos afetos comuns à generalidade dos humanos – e vivem e respiram a luta de classe e a revolução e apenas dedicam amor interminável ao comunismo e ao PCC. Contudo, nos modelos revolucionários masculinos não existe a imposição do abandono do género. Como o Supervisor (leal seguidor da visão de Jiang Qing), personagem de Red Azalea de Anchee Min, explica quando Anchee lhe pergunta pela ausência das vidas privadas e de romance nas óperas-modelo, “Romantic love does not exist among proletarians […] It is a bourgeois fantasy.”

Esta androginia patrocinada pelo PCC pode ilustrar-se com a expressão de um poema de Mao, de 1961 e publicado em 1963, rezando assim: as chinesas “adoram vestes de batalha, não sedas e cetins” (“bu ai hongzhuang ai wuzhuang”). Como nota Tina Mai Chen (no já referido Words and Their Stories, Essays on the Language of the Chinese Revolution), esta expressão foi parte do processo de “desfemininizar as mulheres, não pelo apagamento mas ligando a feminilidade ao feudalismo e ao capitalismo”. As roupas usadas pelos jovens durante a RC seguiam o estilo militar e a uniformização da roupa era imperativa; no caso das raparigas, além deste uniforme universalmente adotado impedir a expressão da individualidade de cada um, retirava-lhes também a possibilidade de expressarem a sua feminilidade – uma vez que o uniforme militar era uma roupa masculina. Novamente, a emancipação das mulheres era vista como a adoção por estas do padrão masculino. No caso das roupas, as raparigas podiam, no máximo, colocar uns cintos largos sobre o casaco militar de forma a marcar a cintura. Rae Yang em Spider Eaters descreve as roupas comuns: “faded uniforms that had been worn by our parents, red armbands, wide canvas army belts, army caps, the peaks pulled down low by girls in the style of the boys”.
O cabelo das raparigas Guardas Vermelhos estava cortado curto e o paradigma de beleza feminino apregoado pelas autoridades (nos posters de propaganda, por exemplo) era o de uma mulher possante, capaz de trabalho pesado, sem qualquer adorno. Rae Yang recorda os seus músculos e a sua falta de higiene pessoal nesses tempos, mas é a descrição de Yan (a sua futura amante) por Anchee Min que melhor evoca o modelo de beleza dos tempos maoistas:
“She was tall, well built, and walked with authority. She wore an old People’s Liberation Army uniform, washed almost white, and gathered at the waist with a three-inch-wide belt. She had two short thick braids. […] She had weather-beaten skin, thick eyebrows, a bony nose, high cheekbones, a full mouth, in the shape of a water chestnut. She had the shoulders of an ancient warlord, extravagantly broad. She was barefoot.”

[1] Os restantes espetáculos modelo foram as óperas ao estilo de Beijing Shajiabang, A Lanterna Vermelha, Tomar a Montanha Tigre pela Estratégia, Nas Docas e Ataque ao Regimento Tigre Branco, bem como a sinfonia Shajiabang.