Downton Abbey: um especial de Natal em forma de filme

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Não sei de vossas mercês, mas eu, como boa anglófila, arrumo todas as séries de televisão que me dêem uma visão de qualidade do modo de vida britânico. Qualquer adaptação de Jane Austen tem-me como espetadora (e está aí uma adaptação de Sanditon pelo meu argumentista janeista preferido, Andrew Davies). Uma diferenciada produção televisiva sobre a história britânica encontra em mim a mais fiel seguinte. Há uns anos no canal People & Arts passava uma série intitulada Aristocrats, baseada nos livros de Stella Tillyard (que eu também muito recomendo, desde logo porque o livro Aristrocrats é sobre quatro mulheres admiráveis): esta vossa amiga era uma fã número 1 destas emissões. The Crown, sobre o reinado de Isabel II? Adoro.

A série de tv Downton Abbey – ideia de um argumentista talentoso que dá pelo nome de Julian Fellowes, o autor do soberbo Gosford Park, versão sétima arte, e Snobs e Past Imperfect, versão literatura, e, claro, do argumento do filme que aqui nos traz – é um daqueles espécimes que uma anglófila não pode perder. A descrição da sociedade pós-eduardiana, durante a Grande Guerra, todas as transformações sociais, económicas, do papel dos sexos e das classes sociais – tudo isso está plasmado na série de tv.

E, depois, fizeram um filme. Que, note-se, deve ser visto por todos os aficionados da tv. Afinal o filme mais parece os típicos especiais de Natal passando na BBC a 24 de dezembro que uma obra de grande ecrã.

Há momentos divertidos. Uma boa quantidade de tiradas da Condessa Viúva de Grantham (a eternamente soberba Maggie Smith), devidamente apuradas e afiadas para nos entreter. O embate entre esta grande dama e Isobel é sempre produtor de gargalhadas. O mutínio dos criados dos Crawley perante os ditatoriais empregados reais. Porém, apesar de serem umas boas duas horas para quem aprecia a recriação dos loucos anos 20 em versão alta sociedade (os vestidos, como sempre, são de morrer) e os resquícios do mundo eduardiano depois da Primeira Guerra Mundial, a verdade é que o filme é de uma superficialidade narrativa assombrosa. Os valentes dramas humanos que perpassam pelas várias temporadas televisivas de Downton Abbey são aqui, no filme, desconhecidos, em prol de uma visita real a Downton que, afinal, traz pouco frisson.

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Nenhuma das linhas do enredo alguma vez chega a ser desenvolvida. O casamento feliz e muito sexual de Mary Crawley (Michelle Dockery) quase não é mostrado. A insatisfação de Edith (Laura Carmichael) por ter deixado uma profissão (de editora de revista) que adorava é aflorada muito en passant, quando podia bem, nestes tempos de feminismo galopante, ser explorada de forma mais interessante. Afinal Lady Edith teve uma história de vida curiosa e foi uma editora de comunicação social numa época em que as senhoras não tinham ocupação além de trocarem de roupa quatro vezes por dia. O futuro das grandes propriedades como Downton Abbey – fruto das alterações sociológicas do pós guerra e dos loucos anos 20 – é tema aflorado e nunca aprofundado. O caso da herdeira improvável (mas cuja origem desde muito cedo se desconfia) é embaraçosamente mal explorado. A conspiração durante a parada do Rei Jorge V, do mesmo modo, não nos faz perder um único batimento cardíaco. O registo é sempre de novela, nunca de filme que perturba, como deve, as almas acomodadas.

A única linha em que o argumento e o filme ganham a recomendada vivacidade é a história da descoberta do mundo gay por Thomas Barrow (Robert James-Collier) , o mordomo de Downton Abbey (que também surpreende Lord Grantham por ter princípios), e do seu novo amante. Há beijo gay para quem quiser ver e tudo. E vai muito bem no filme.

Em suma, aconselha-se o filme a quem idolatrava a série de tv. (Eu! Eu! Eu!) Não vai ficar amofinado com este grande episódio de tv que por alguma razão foi transformado em filme. Mas convém não esperar muito mais do produto televisivo. Aproveita as tiradas cáusticas de Lady Grantham, de Isobel, de Miss Potmore (a cozinheira) e de Daisy (Sophie McShera), a ajudante de cozinha socialista e republicana. E o desbravar do mundo gay por Thomas Barrow. Além – evidentemente – dos cenários aprimorados, dos figurinos sempre agradáveis à vista, e da relação upstairs-downstairs que é três quintos do sumo de Downton Abbey, Desta vez, com umas personagens da realeza entrando e saindo. É suficiente e agradável, porém quem esperava mais rasgo e criatividade, no filme do que foi uma série de tv icónica, fica desfalcado.

Downton Abbey estreia a 19 de setembro.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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