O Pacto de Não Agressão Germano-Soviético, comummente mais conhecido como Ribbentrop-Molotov, é ainda, 80 anos depois, um dos mais estudados momentos da História do século XX.
É curioso que se olharmos para o pacto germano-soviético à luz da tradição diplomática europeia, não deixamos de estranhar a celeuma e o choque que o acordo provocou então, pois a verdade, é que o pacto era na sua essência uma partição de esferas de influência, um exemplo clássico de Raison d’État, um acordo diplomático que Richelieu ou Bismark não desdenhariam.
O que era estranho à norma e tradição europeia, era o conceito de segurança colectiva, ideia que apesar dos seus antecedentes nas antigas ligas oitocentistas, e tratados do Século XIX, ganhara força com os Quatorze Pontos que o presidente norte americano Woodrow Wilson apresentara em 1918, um projecto que antecedera o Tratado de Versalhes.
Assustados com a duração e a ferocidade do conflito, os líderes europeus viveram o período entre guerras obcecados com a ideia de garantir uma paz duradoura, defendendo o desarmamento mas rejeitando o idealismo wilsoniano que tentara excluir da diplomacia europeia as ideias de equilibro de poder e de esferas de influência.
Deturpando o projecto de Wilson para o pós-guerra, os vencedores do conflito redesenharam o mapa europeu, partilharam as possessões coloniais alemãs, desmantelaram o Império Otomano e garantiram a autodeterminação de antigas províncias e territórios que tinham estado séculos debaixo do jugo austríaco e russo.
O Tratado de Versalhes garantira um novo desenho da Europa, que com o desaparecimento do Império Austro-húngaro e do Império Russo, provocara um “vazio” de força no centro-leste europeu, dividido num conjunto de novos estados, sem força nem capacidade de travar um futuro “renascimento” alemão ou russo.
Por outro lado, os vencedores de Versalhes excluíram alemães e russos das negociações, os primeiros, por serem culpados pelo começo do conflito, e a Rússia, que se transformara entretanto em URSS, pelo medo que a revolução bolchevique provocava nos governos ocidentais.
Esse duplo isolamento conduzira ao Tratado de Rapallo, de 1922, quando alemães e soviéticos, fartos de serem tratados como párias da cena política internacional, restabeleceram relações diplomáticas e lançaram as bases para um entendimento que abriria caminho a acordos comerciais e militares.
Alemães e soviéticos percorreram caminhos paralelos até ao fim da década, quando a grande crise de 1929 abalou profundamente a Alemanha, fragilizando a República de Weimar, que se tornou refém dos extremismos, acabando por sucumbir com a ascensão de Hitler ao poder em 1933, com a promessa de destruir a ordem estabelecida pelo Tratado de Versalhes.
Na União Soviética, era Estaline o senhor todo-poderoso, que assegurara o poder depois da morte de Lenine, afastando Trotsky e que iniciara entretanto o seu longo reinado de terror, eliminando constantemente potenciais rivais e antigos aliados.
Seriam estes dois homens que estariam por detrás do Pacto, não obstante o baptismo lembrar o nome dos seus ministros dos Negócios Estrangeiros, Joachim Ribbentrop e Vyacheslav Molotov.
No Mein Kampf Hitler demonstrara ao que viera: acabar com os ditames de Versalhes, recuperar a grandeza da Alemanha, a conquista do espaço vital a leste (lebensraum) e a guerra contra bolchevismo e o sionismo. A criação do Eixo Roma-Berlim e a aliança com o Japão, ostensivamente apontados à União Soviética, davam armas negociais que Hitler não hesitaria em utilizar.
Do outro lado, Estaline estava a par das ideias que Hitler proclamara no Mein Kampf, mas a verdade, é que para os dirigentes soviéticos, Hitler não era mais ou menos perigoso ou desprezível que os líderes das democracias liberais. Em Moscovo acreditava-se que estaria iminente mais um grande conflito entre os “blocos imperialistas ocidentais”, e o papel da União Soviética, seria manter a neutralidade, enquanto se reforçava para o futuro embate com o vencedor desse “conflito capitalista”.
Contudo, com Maxim Litvinov à frente dos Negócios Estrangeiros, um advogado da segurança colectiva, a URSS tentou ser parte integrante do “concerto da Europa”, tentando comprometer as restantes potências europeias em acordos que garantissem a paz no continente. A tentativa de atrair primeiramente a França e depois a Grã-Bretanha para uma grande aliança, foi a reacção óbvia às alianças estabelecidas por Berlim com Roma e Tóquio.
Na Europa Ocidental, Grã-Bretanha e França pareciam adormecidas perante o desenvolvimento da História, mas tiveram papéis diferentes no período entre guerras. Enquanto os britânicos voltavam ao isolacionismo, tentando afastarem-se dos problemas da Europa, a França criava uma rede de alianças com a Polónia e a Checoslováquia para tentar parar o expansionismo de alemães e soviéticos.
Incapazes de comprometer os Estados Unidos e a Grã.Bretanha numa aliança, os franceses ainda tentaram uma aliança com Moscovo, uma ideia que acabou por esbarrar sempre nos temores de Paris em relação aos planos soviéticos, e no medo que tal aliança provocasse um alarme que afastasse ainda mais Londres do seu velho aliado.
Os anos 30 foram anos perdidos para ambas as diplomacias. Durante anos, Whitehall e o Quai d’Orsay, residiram num mar de equívocos, demonstrando a total incapacidade de ingleses e franceses conduzirem o destino da Europa, como tinham feito até à Primeira Guerra Mundial.
Ambos os países mantiveram-se neutros durante a Guerra Civil espanhola, preâmbulo da Segunda Guerra Mundial, enquanto soviéticos e alemães se enfrentavam no cenário de guerra espanhol, apoiando respectivamente republicanos e nacionalistas; ficaram pelos protestos e “sanções” aquando da expansão japonesa no oriente e italiana em África; e por fim tentaram apaziguar de forma débil e temerária, cada nova acção de Hitler para desmantelar os ditames de Versalhes: o rearmamento e a criação da Força Aérea, a remilitarização da Renânia, a anexação da Áustria, a questão das Sudetas e o desmembramento da Checoslováquia,e a ocupação do porto lituano de Memel.
Uma a uma, Hitler desmontava as humilhações impostas pelos vencedores de Versalhes. Em Londres e Paris, tentava-se apaziguar os intuitos expansionistas de Berlim, mas a cada nova cedência, Hitler regressava com uma nova exigência e um novo ultimato.
Após o acordo de Munique, onde as democracias ocidentais aceitaram a humilhação e desmantelamento de parte da sua aliada Checoslováquia para evitarem o conflito, Chamberlain regressou a Londres vitorioso, proclamando que conseguira “ a Paz para o nosso tempo”.
Já Churchill, então uma voz discordante e contra a corrente, que há anos que alertava para o perigo de Hitler e para a necessidade de tomar uma posição firme contra os planos alemães, não hesitou em proclamar que os líderes ocidentais tinham tido que escolher entre a guerra e a vergonha, e que tinham escolhido a vergonha, e como tal, teriam a guerra.
Enquanto na União Soviética, Estaline iniciava uma purga sem precedentes na história, Hitler virava a sua atenção para Danzing, na Polónia, e perante a ameaça nazi, os governos de Daladier e Chamberlain viram-se obrigados a confirmar a inviolabilidade das fronteiras polacas.
Apesar das promessas de Hitler, que a anexação do corredor polaco era a última exigência alemã, os aliados ocidentais não aceitaram ceder mais um centímetro às pretensões germânicas.
Em Londres e Paris traçava-se a linha de não retorno. Hitler ainda tentou negociar com a Grã-Bretanha, mas a intransigência inglesa em assinar acordos com as potências continentais, levou Hitler a procurar novas opções. O estado maior alemão já iniciara os planos para o ataque à Polónia, e Hitler queria que o ataque se iniciasse antes do fim mês, mas antes disso era preciso assegurar que a Alemanha não iria enfrentar uma guerra em duas frentes.
A 11 de Agosto, em conversa com o alto comissário de Danzig, Hitler não podia ser mais claro: “Tudo o que faço é dirigido contra a Rússia. Se o Ocidente é demasiado estúpido e demasiado cego para o compreender, ver-me-ei obrigado a entrar em acordo com os russos para esmagar o Ocidente e, depois da derrota, vira-me contra a URSS com todas as minhas forças.”
A troca de correspondência informal entre Berlim e Moscovo prosseguiu nos dias seguintes, e a 21 de Agosto, depois de uma missiva de Hitler a Estaline, chegou o convite soviético para que Ribentropp visitasse Moscovo 48 depois.
A 23 de Agosto Ribentropp chegou a Moscovo e foi conduzido à presença de Estaline, que normalmente não se envolvia pessoalmente nas negociações, mas que assim quis demonstrar a importância de um acordo para a União Soviética.
Claramente, Estaline tinha ganho a guerra de nervos, ao conseguir chegar às vésperas do conflito mantendo em aberto todas as opções soviéticas. Ciente que a Grã-Bretanha e a França só poderiam entregar à União Soviética o que a Alemanha prometia depois de um duro conflito, Estaline aguardou pela proposta alemã. Como seria de esperar, a pressa de Hitler, caiu como mel no Kremlin.
Estaline ouviu com certo enfado, e desinteresse, o panegírico que Ribentropp trouxera estudado de Berlim, não mostrando grande interesse nem no Pacto de Não Agressão, nem nas promessas de amizade alemã.
O caso mudou de figura, quando Ribentropp começou a apresentar as propostas para um novo desenho da Europa Oriental, o famoso pacto secreto que incluía a divisão da Polónia, com uma aproximação às fronteiras de 1914, mas com a principal diferença de Varsóvia agora ficar incluída na parte alemã. Esboçou-se também a ideia da criação de um estado fantoche polaco, para apaziguar Londres e Paris.
Quanto ao Báltico, a proposta alemã garantia que a Lituânia passasse para a esfera do III Reich, a Letónia seria fraccionada, e a Estónia e a Finlândia ficariam debaixo da esfera soviética, assim garantindo a zona tampão que há muito Estaline procurava, para a segurança de Leninegrado.
Estaline contrargumentou, exigindo a totalidade da Letónia e a inclusão da região romena da Bessarábia. Ribentropp enviou um telegrama a Hitler, que rapidamente anuiu às pretensões soviéticas e o pacto podia ser assinado por Molotov e Ribentropp.
Ribentropp regressou vitorioso a Berlim, onde Hitler o aclamou como um “segundo Bismark”. Depois de anos de uma hesitação titubeante em Londres e Paris, alemães e soviéticos assinavam um pacto revolucionário, que redesenhava as fronteiras da Europa, apenas três dias depois da mensagem inicial que Hitler enviara a Estaline.
A notícia do pacto caiu com estrondo na Europa, com os líderes ocidentais incapazes de perceber o que levara inimigos mortais a entenderem-se, sem perceberem, que fora precisamente a incapacidade francesa e inglesa de tomar decisões e assumi-las, que conduzira nazis e soviéticos para os braços uns dos outros.
A 1 de Setembro iniciava-se a invasão alemã da Polónia, a que a França e a Grã-Bretanha responderam com a declaração de guerra. Duas semanas depois os soviéticos tomam a sua parte dos despojos na Polónia, e soldados de ambos exércitos confraternizavam na nova fronteira que fora desenhada no pacto Ribentropp-Molotov.
Ainda em Setembro, a URSS obrigava os estados bálticos a aceitarem a instalação de bases soviéticas no seu território, o primeiro passo para a anexação das três repúblicas que teria lugar no verão seguinte.
A Finlândia também receberia um ultimato, mas ao contrário das três repúblicas, resistiu, dando inicio a um conflito duro, que a começo custou muitas vidas ao exército vermelho, ao ponto de entusiasmar os governos de Londres e Paris, com a possibilidade do envio de uma força expedicionária para ajudar o finlandeses.
Um projecto que acabou por não sair do papel, mas que revelava o desnorte dos aliados ocidentais, que sem autorização, esperavam arrastar a Suécia e a Noruega para o conflito, para iniciar uma guerra em simultâneo com a Alemanha e a União Soviética, apenas uns meses antes da França capitular perante o avanço alemão.
Os meses seguintes à assinatura do Pacto confirmaram esse desnorte. Nem um ano tinha decorrido e a Grã-Bretanha já estava isolada na luta contra o III Reich, com a França ocupada e a Alemanha dona e senhora do continente, e com Hitler pronto para preparar o seu grande plano, a invasão e conquista da União Soviética.
Guerra contra o sionismo? Mas estão a brincar?