Nos Estados Unidos não se sai disto: com demasiada frequência um homem pega numa arma e mata a rodos. Claro que há vários fatores a considerar. Estes homens tendem a ser haters de imigrantes, mulheres (os sinistros incel), mexicanos, pessoas felizes, whatever. E nos tempos que correm a retórica odiosa e odienta repetida por Trump e pelos seus acéfalos (e cúmplices) apoiantes – os ataques racistas com a permanente narrativa da ‘infestação’ (e uma infestação resolve-se matando os bichos que a causam, toda a gente sabe), os ataques misóginos, que os ataques mais vis e soezes de Trump são sempre reservados a mulheres – é um catalisador para a violência. E, em boa verdade, pretende ser. Trump e os seus apoiantes sabem perfeitamente bem que alguma alma mais perturbada ou mais maldosa encara esta narrativa como ordem (ou, pelo menos, forte incentivo) a matar. Historicamente os tempos de violência retórica foram seguidos de tempos de violência física. Não há inocentes ou distraídos aqui. Quem tem retórica desumanizadora e repetidamente de ódio descabelado, ou quem a apoia, é cúmplice e culpado da violência sobre os alvos desumanizados. Ponto.
Mas não é disso que hoje quero escrever. Um fator que sem dúvida nenhuma potencia os crimes violentos onde morrem pessoas é a disponibilidade fácil de armas de fogo. E como, atualmente, juntamente com o crescimento da alt right por todo o mundo, os defensores da liberdade da posse de armas têm aumentado, há que desmontar argumentos, de resto bastante básicos.
A falta de seriedade e de inteligência é tal que chegam a pretender comparar as mortes por armas de fogo dos Estados Unidos aos mais variados estados falhados ou semi falhados da América Latina e de África. Como se a criminalidade violenta de um dos países mais ricos do mundo não tivesse de ser exclusivamente comparado com as dos outros países igualmente ricos. Enfim.
Outro argumento (é como quem diz) igualmente sofisticado (#not) é referir que não interessa a lei, porque há países (lá está, esses mais ou menos falhados) com legislações restritas mas há armas à solta e mortes na mesma. De facto é preciso ter doado o cérebro para pesquisa antes de tentar este argumento. Talvez – talvez – se os EUA tivessem legislação restritiva, esta fosse mais decisivamente aplicada que nos tais estados falhados. Além disso, o que se demonstra é que a abundância e disponibilidade de armas e a liberdade de as transportar – com permissão legal ou não – está ligada a mortes violentas.
A propósito de abundância de armas, também há a idiotice de argumentarem (digamos) que são as pessoas que matam, não as armas. Bom, por esse argumento, então vamos permitir que cada um possua uma ou duas bombas atómicas de estimação, porque as bombas atómicas deixadas sozinhas não matam ninguém. Quem nunca quis ter em casa um lança morteiros terra-ar? Não, são as pessoas que são más ou doentes e matam.
O que os possuidores de cérebro também entendem é que, se as armas sozinhas não matam, as pessoas, em tendo acesso a armas, matam. E uma legislação que permite que gente doente e extremista tenha acesso a armas (como a americana), é uma legislação que mata. Não há qualquer defesa possível de uma lei que permite que gente sem exames psicológicos compre armas (e não obrigue a testes periódicos), que não haja quem faça – antes de comprar e regularmente – exames ao feed das redes sociais, que não questione hábitos e necessidade para ter a arma, um quilométrico etc.
Sobre esta tolice ‘as armas não matam, são as pessoas’, apresento aqui dois gráficos, tirados de China Under Mao, de Andrew Walder. No verão de 1967, em plena Revolução Cultural, para contrariar o controlo dos militares das instituições públicas, Mao e o Grupo dos Quatro começaram a distribuir armas à população. Resultado (até as armas voltarem a ser totalmente confiscadas)? Enquanto existiram armas à solta, o número de incidentes violentos (gráfico 1) e de mortes (gráfico 2) aumentaram exponencialmente na China. Segundo os espertos pró armas, a abundância de armas nada teve que ver com o crescimento explosivo do número de mortes – foram os chineses que tiveram uma louca vontade de matar pessoas, mas por coincidência só durante uns meses no verão de 1967.


E a Suíça, ah e a Suíça? Na Suíça, ao contrário dos Estados Unidos, é proibido transportar as armas no espaço público (armas que se adquirem com relativa facilidade, apesar de os eleitores estarem a começar a querer introduzir limitações também aqui, como de resto mostrou um referendo já este ano). Mais: apenas quem teve treino militar, e as sabe usar em segurança, pode ter armas, e estas têm de estar guardadas escondidas e separadas das munições.
O que tem lógica, porque todas as pessoas com neurónios funcionais entendem que se pode ser defensável (e mesmo assim…) a permissão legal de alguém ter armas dentro da sua casa e da sua propriedade para a defender, já é inteiramente inaceitável que alguém possa transportar pelo espaço público um aparelho com capacidade de matar muitas pessoas em pouco tempo. Pelo velho cliché: a nossa liberdade termina onde começa a dos outros. Se nos arrogamos o direito de nos movermos no espaço público com segurança, não pode ser permitido que pessoas sabe-se lá com que intenções e com que estado psicológico tenham permissão para estarem neste mesmo espaço com armas que exterminam vidas.
E chegamos a outro argumento (muitas aspas) imbecil. Ah e os ataques com facas, não matam? E os ataques com ácido. Isto tudo mata e destrói, é um facto, mas, outra vez, a maioria das pessoas consegue perceber (sem lhe fazerem desenhos) que enquanto o atirador de Dayton matou nove pessoas em menos de 30 segundos (trinta segundos), alguém com uma faca demoraria bastante mais a ter tal taxa de mortandade e, logo, seria mais fácil pará-lo antes de voltar a matar.
A liberalização da posse e porte de armas tem outro objetivo, porventura ainda mais sinistro: limitar a liberdade de movimentos de algumas pessoas, sobretudo mulheres. Como é evidente (mesmo para quem nega), mais armas à solta na comunidade equivalem a mais criminalidade violenta. Mais criminalidade leva a mais insegurança – maior risco de morte e ferimentos, crescente risco de violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças e idosos. Ora é conhecido que ambientes seguros são essenciais para a liberdade de movimentos das mulheres e crianças e idosos (há abundância de material sobre isto nas áreas da arquitetura e urbanismo, por exemplo). E este não é um posto despiciendo: defender a liberdade de porte de armas é defender a restrição de movimentos das mulheres. Porque, por serem mais fracas fisicamente (tal como as crianças e idosos), são mais suscetíveis de se tornarem vítimas de comportamentos violentos. Trata-se, portanto, de mais uma tentativa de confinar as mulheres ao espaço doméstico, de as desincentivar a sair de casa sozinhas, de lhes limitar movimentos, capacidade de ter emprego e um largo etc.
Uma das funções primordiais de qualquer estado, mínimo ou máximo, é a segurança dos cidadãos, por pessoas treinadas e escrutinadas para isso. Transferir para os cidadãos a obrigação de se protegerem (carregando armas também) é uma perversidade e um abuso aos cidadãos. Eu, por exemplo, que tenho péssima pontaria, teria de ficar em casa protegida por vários cadeados.
Quando virem alguém que defende a liberalização de posse de armas em nome da liberdade, chamem-lhe nomes. É precisamente alguém que está a querer retirar liberdade aos demais.
“Porque, por serem mais fracas fisicamente (tal como as crianças e idosos), são mais suscetíveis de serem vítimas de comportamentos violentos.”
A mim parece-me que isso até significaria que as armas de fogo (que largamente desvalorizam o papel da força física) levariam a que violência afetasse MENOS as mulheres (e crianças e idosos); isto é, enquanto é de esperar que as mulheres estejam sobre-representadas entre as vítimas de socos, pontapés e facadas (por serem mais fracas), não me parece que haja grande razão para estarem sobre-representadas entre as vítimas de tiroteios (isto é, duvido que muita gente, antes dar um tiro em alguém pense “é melhor não me meter como este, que é um calmeirão e ainda me dá um enxurro de porrada”; ou, pelo menos, pensarão muito menos nisso antes de dar um tiro do que antes de dar um soco ou mesmo uma facada, suponho)