Qualquer pessoa que goste de The Beatles – é o meu caso: devorava as músicas umas atrás das outras aí quando tinha 10, 11 anos e fiz-me o favor de nunca me libertar de tal pancada musical – não deve deixar de ir ver o filme Yesterday, de Danny Boyle. Já anda por aí há umas semanas, mas fará mal se o considerar old news.
Tentando não fazer spoilers, a ação passa-se num mundo onde não existiram os Beatles nem as músicas dos Beatles (nem dos Oasis, nem o Wonderwall). Um músico parece ser a única pessoa que se lembra das músicas. E vai tocá-las para um mundo que nunca ouviu Let It Be, The Long and Winding Road, And I Love Her, Eleanor Rugby, I Wanna Hold Your Hand, Hey Jude (travestida para um Hey Dude) – e Yesterday e todas as outras.
O filme, não se iludam, é uma daquelas comédias românticas benignas, onde prevalece uma moral certinha e compostinha. Se toda a gente fica satisfeita se o love affair inevitável resultar, já seria mais interessante que na questão da apropriação musical o desenlace não fosse tão bonzinho e tão cliché moralizador. Mas é o que se consegue para estes filmes.
Em todo o caso, como já disse lá em cima, o filme não é para perder em calhando ser apreciador dos Beatles. Tem humor abundante – e inteligente e bem aplicado às personagens e na dose certa. Kate McKinnon, na manager Debra, é malvadamente deliciosa. Eu dei umas valentes gargalhadas. (Também me comovi com as músicas, mas concluo que se chega a uma certa fase da vida e tem-se sorte de ir ver um filme onde não se deixam uma ou duas lágrimas. E não esqueçamos – digo eu à laia de justificação – que as músicas são instrumentos poderosíssimos para evocar memórias emocionais positivas.)
Também passa por alguns pontos curiosos (ainda que não faça deles questões existenciais), como a displicência do público perante grandes músicas quando não sabe que são grandes músicas. Esta particularidade não desmereceria maior profundidade – como adoramos e veneramos aquilo que já foi validado como bom, mas ignoramos exatamente a mesma coisa se não nos tiverem dito anteriormente que é fabuloso mas, ao invés, tivermos de decidir por nós. Uma passagem pelos excessos de policiamento da linguagem – The White Album, garante a empresa de comunicação, tem um problema de falta de diversidade. Tanto mais insólito quanto o músico que canta as canções dos Beatles, Jack Malik (Himesh Patel), é indiano. Um mundo que de repente perde várias das suas maiores referências culturais (e até produtos de consumo) – seria também curioso ir investigar mais as consequências dessa perda.
O filme prefere focar-se na fraude artística de Malik que o atormenta (as suas próprias músicas nunca entusiasmam ninguém), e da injustiça que é o usurpador destronar Ed Sheeran (himself, com aparição no filme representando-se a si próprio) quando ‘compõe’ músicas dos Beatles. (Eu disse que Yesterday, como boa comédia romântica, é moralista.)
Mas, além do humor escorreito e dos vislumbres de paradoxos, o filme tem – é o melhor – a música dos Beatles. As letras deliciosas e divertidas ou, à vez, agridoces (Drive My Car ou Paperback Writer ou Eleanor Rugby ou The Fool on the Hill ou We Can Work It Out, e paro aqui para não escrever umas centenas de caracteres com nomes de canções, são peças literárias em si próprias e ainda acumulam com contar histórias com nexo). Faltam muitas músicas, claro, a algumas alude-se em frases nos diálogos (‘i need the guitar to gently weep’, ‘will you still need me, will you still feed me when i’m sixty four?’ e mais e mais). Mas não é um documentário. E podemos sempre ir ao Youtube ver os videoclips das músicas menos universalmente conhecidas dos Beatles. Além disso, a vida não é só feita de belíssimos filmes negros e medianamente depressivos. No verão os filmes leves com boa música caem bem.