Se há coisa que o estado do Alabama quase sempre conseguiu foi estar do lado errado da história.
Começou por ser uma zona onde os principais proprietários locais eram leais à coroa britânica aquando da luta pela independência. Depois disputada entre a Espanha e os EUA a região inclinou-se maioritariamente para o domínio espanhol.
Após a anexação pelos americanos tornou-se um estado da União, tornando-se um dos mais eficazes a aplicar o infame Indian Removal Act de 1830 que dizimou ou expulsou a população indígena do estado.
Para sustentar as suas crescentes plantações importaram-se escravos que por volta de 1860 já eram metade da população.
Feroz opositor da abolição da escravatura, o Alabama separou-se da União e aderiu à famigerada Confederação. Derrotada a Confederação, a Dixie Land continuou a ser cantada, a bandeira do exército confederado hasteada e o Klan nunca se sentiu estrangeiro dentro das fronteiras do estado.
Abolida a escravatura, o Alabama abraçou a Jim Crow Law, assumindo o segregacionismo e lutando por todos os meios legais contra Washington para manter a segregação. Foi num autocarro em Montgomery que Rosa Parks se recusou a levantar para ceder o seu lugar a um branco na zona reservada a “coloured”, porque já não havia lugares livres na zona destinada aos brancos. Foi em Birmingham que quatro jovens negras morreram num atentado à bomba para impedir negros e negras de andarem nas mesmas escolas que brancos, foi à Universidade do Alabama que o governo federal teve que enviar o exército para garantir que os alunos negros não eram discriminados contra a feroz oposição do governador George Wallace.
Em 1963, já Wallace avisara ao que vinha no seu discurso de tomada de posse, “I draw the line in the dust and toss the gauntlet before the feet of tyranny, and I say segregation now, segregation tomorrow and segregation forever”…
“Domada” a fúria segregacionista, o Alabama virou a sua luta contra os direitos das mulheres, o aborto, sem nunca esquecer de pôr os homossexuais no seu lugar. Este é o estado onde defensores da vida intra uterina colocaram bombas em clínicas e mataram pessoas em defesa do valor supremo da vida.
Nos últimos tempos, o Heart of Dixie, o coração do antigo sul confederado, como é conhecido o Alabama, tem estado no centro das atenções com as recentes alterações às leis do Aborto.
Impregnada pela moral evangélica que galga terreno nos EUA da administração Trump, a elite política local vai revertendo os direitos adquiridos pelas mulheres ao longo de décadas de luta.
Em Novembro do ano passado, os eleitores do Alabama aprovaram uma emenda à constituição estatal que consagrava “the sanctity of unborn life and rights of unborn children”, em sumo, a igualdade perante a lei entre um feto e alguém que já nasceu.
Pouco tempo depois, um juiz do Condado de Madison, famoso pelas suas pontes, e pelo filme de Clint Eastwood com Meryl Streep, reconheceu o direito de um jovem de 19 anos processar uma clínica e uma farmacêutica responsáveis pela prescrição e produção de uma pílula abortiva à sua namorada.
Seguiu-se, em maio passado, a mais restritiva lei anti-aborto do país, banindo o aborto em qualquer altura da gravidez, mesmo em caso de mal formação do feto, incesto ou violação. Nem dois milhares de pessoas se manifestaram contra a lei em Birmingham, que na sua área metropolitana conta com cerca de um milhão de pessoas.
Por último, o extraordinário caso de Marshae Jones que enquanto grávida foi baleada na barriga numa discussão, tendo perdido o filho, para mais tarde ter sido acusada de ser a responsável pelo começo da discussão e como tal, culpada da morte do feto…
É neste caldo de intolerância e intransigência que sempre foi a sociedade do Alabama que os ventos que sopram de Washington, desde a eleição de Donald Trump, vão ganhando força sobre a forma do mais atroz anti-feminismo que chegam ao ponto de tornar uma vítima baleada numa mulher culpada pela morte do feto.
A verdade é que esta decisão não surpreende, enquadrando-se com a centenária história do Alabama. Convém sempre lembrar que o racismo é irmão da misoginia e da homofobia, assim como o machismo é irmão do supremacismo branco e dos recentes movimentos de orgulho heterossexual. É por isso é que esta luta não é só das mulheres, é de todos o que estão do lado certo da história. Porque Rosa Parks não era só discriminada nos seus direitos por ser negra, era também por ser mulher. Seja no Alabama ou cá, ainda faz todo o sentido lembrar a canção do John Lennon:
Woman is the nigger of the world
Yes, she is, think about it
Woman is the nigger of the world
Think about it, do something about it.