Somos o Esquecimento que Seremos, Quetzal
O meu pai e a minha mãe eram contraditórios nas suas crenças e nos seus comportamentos, mas complementares e de trato muito amoroso na vida diária. Havia um contraste tão nítido de atitude, de carácter e de formação entre os dois que, para a criança que eu era, essa diferença radical entre os meus modelos de vida era a adivinha mais difícil de decifrar. Ele era agnóstico e ela era quase mística; ele odiava o dinheiro e, ela, a pobreza; ele era materialista no plano ultraterreno e espiritual no terreno, enquanto ela deixava o espiritual para o além e, cá na Terra, perseguia os bens materiais. A contradição, no entanto, não parecia afastá-los, mas atraí-los um para o outro, talvez por partilharem, apesar de tudo, um mesmo núcleo de ética humana com o qual se identificavam. O meu pai consultava-a para tudo, enquanto a minha mãe, como se costuma dizer, via pelos olhos dele e nutria por ele um amor profundo, incondicional, à prova não só de contratempos, como também de qualquer desacordo radical ou de qualquer informação maligna ou perniciosa que alguma «alma caridosa» lhe desse sobre ele.
Tem todos os ingredientes de uma grande narrativa: personagens que viveram verdadeiramente a história, vidas entregues a causas e ideais, retrato de um país e de uma sociedade, de uma época e seus costumes. Uma viagem à Colômbia e às suas crenças, uma excelente aventura de descoberta – de lugares, pessoas e suas vidas.
Admiro a coragem de Héctor Abad Faciolince. Escrever sobre a vida do seu próprio pai não é um exercício fácil, dadas as circunstâncias do seu desaparecimento: foi assassinado. Mais nobre é o reconhecimento, já na parte final do livro, que esta seria a única forma que estava ao seu alcance de honrar este idealista, lutador, notável académico e médico; mesmo que tenham passado alguns anos e a ferida da morte violenta nunca tenha verdadeiramente sarado.
Manuel Rivas diz: “o que vou lendo de Héctor Abad vai sendo gravado por mim como migalhas de pão muito esféricas, polidas, para quando tiver de atravessar um grande bosque na noite”. Não podia estar mais de acordo. É preciso coragem para ir ao baú das memórias e procurar as mais belas e também mais tristes vivências no trajecto de cada um.
Somos o Esquecimento que Seremos não é só a história de vida do Dr. Héctor. É também da família do escritor, único rapaz entre quatro irmãs. É a história de Faciolince e do pai, de como este o adorava e enchia de coragem e mimos, da deliciosa retórica que usa na educação dos filhos, tentando sempre compreender as questões únicas e próprias das diferentes fases de crescimento, até à vida adulta. Numa mensagem única de amor e compreensão que, até hoje, nunca li em qualquer outro livro que se desafie a falar da relação filho-pai.
A honestidade com que o escritor fala de assuntos tão pessoais é marcante. A morte prematura de uma irmã aos quinze anos, vítima de cancro, por exemplo. De igual modo, não esconde as suas origens moldadas no exagerado catolicismo, nos colégios onde estudou ou a família da mãe, onde abundavam inúmeros sacerdotes e pessoas ligadas à Igreja. Uma Igreja que tentava controlar as crenças e os meios académicos que punham em causa a sua hegemonia. O mesmo se passa com as facções políticas e os boatos de se pertencer a determinada corrente, uma perseguição sanguinária.
Apesar da nossa principal personagem não fazer parte de qualquer quadro partidário, são impressionantes as pressões e ameaças que sentiu por escrever num jornal e por defender as suas ideias enquanto académico universitário. Por isso paga com a vida. Ele e muitos outros que são retratados neste livro, alguns anónimos cujo paradeiro nunca mais foi investigado.
É difícil enumerarmos quantos livros nos emocionam. Esta história não consegui largá-la, foi sempre mais forte do que eu. Por favor leiam este tratado de amor, uma ode à escrita.