É violação, não é abuso. E é roubo, não é furto

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Foi recentemente proferida a sentença do Tribunal Supremo em Espanha que agravou a pena da “La Manada” de 9 anos para 15 anos de prisão. E chamou os bois pelos nomes: são uma manada de violadores.

O tribunal de primeira instância – a Audiência Provincial de Navarra – composto por três juízes, havia qualificado a violação oral, vaginal e anal de uma jovem mulher de 18 anos, por 5 homens adultos, como “abuso sexual continuado”, absolvendo-os do crime de violação.

No douto entender destes magistrados do tribunal inferior, o horror vivido por esta jovem não foi suficientemente horrível para ser violação. Muito embora tivesse 5 homens estranhos, que havia conhecido minutos antes, a penetrar sem preservativo todos os seus orifícios num vão de escada sujo, aquele tribunal foi de opinião que a vítima havia colaborado por não ter resistido contra 5 homens maiores que ela e por ter fechado os olhos. Se ela não deu luta – onde a luta era impossível – e obedeceu às instruções daqueles estranhos, é porque não foi assim tão mau. Quiçá ela não consentiu, em parte? Terá fechado os olhos por prazer?

Paradoxalmente, foi o sadismo destes cinco violadores que permitiu a produção de prova, evitando-se assim mais um arquivamento com insinuações de “falsa denúncia”. Os cinco homens filmaram todo o crime, o que obrigou o tribunal a condená-los.

Estando afastada a desculpa habitual da falsidade da denúncia por existência dos vídeos, a defesa dos 5 violadores foi baseada no alegado consentimento da vítima. E se todo o circunstancialismo do crime nos basta para construir a certeza de que jamais existiu consentimento por parte dela, o facto de eles terem roubado o seu telemóvel no final – impedindo-a de pedir ajuda ou de chamar a polícia – deita por terra toda a teoria do “ela consentiu”. Se algum consentimento tivesse existido, teriam ficado com o número dela, não com o telemóvel.

O que nos leva à primeira menção desonrosa deste texto, que vai para o juíz Ricardo González , do tribunal inferior. Comecemos por referir que foi este o juíz que conduziu o interrogatório mais íntimo e vexatório à vitima, demonstrando uma obsessão doentia por todos os pormenores mais gráficos da violação. Mas as respostas e lágrimas da vítima, bem como as imagens e sons do crime – que viu vezes sem conta – não foram suficientes para criar a convicção no magistrado de que um crime sexual ocorrera. Não só foi o único a querer absolver os arguidos, como votou sempre contra a sua prisão preventiva. E ainda se faz passar por um especialista em psicologia já que considerou ser “óbvio” que a vítima não sentiu dor quando estava a ser violada por 5 homens em grupo. O que é chocante mas não surpreendente, dado que este magistrado tem um historial de considerar vítimas silenciosas como complacentes e de absolver predadores sexuais. Mesmo que seja um pai a abusar da própria filha menor, como neste caso terrificante.

Segundo Ricardo González, o único crime que “La Manada” praticou, escreveu ele no seu voto vencido, foi o furto do telemóvel. Ainda vivemos num mundo onde a integridade e autodeterminação sexual de uma adolescente vale menos que um telemóvel usado para alguns juizes. Por todo o mundo, muitas mulheres e meninas não são apenas objectos, são objectos usados e baratos.

Felizmente os colegas do juíz discordaram dele, em parte, e condenaram os 5 homens por “abuso sexual continuado”. Pese embora a condenação, as mulheres espanholas rugiram perante a sentença. O crime era violação, e não abuso, e 9 anos era muito pouco tempo dada a violência do crime. De imediato saíram à rua em protesto contra aqueles juízes. Por todo o país se ouviu o rugido “a la calle!” E as leoas ouviram e inudaram as ruas. Eram elas a manada, protegendo e defendendo uma das suas. Elas não precisaram de ver vídeos do crime para acreditarem na sua irmã: #HermanaYoTeCreo será sempre o meu hashtag preferido e que mais me comove. Porque condensa o meu feminismo: a sororidade, a entre-ajuda feminina e a falsidade do mito das falsas denúncias.

A sentença agora proferida matou um bocadinho da nossa sede por justiça. Uma pena de 15 anos é mais dura que 9, sendo que quando sairem, ficam ainda com 8 anos de pena suspensa, pelo que se reincidirem – qualquer que seja o crime – regressam à prisão por mais 8 anos.

Foi também uma vitória os cinco juízes terem sido unânimes e terem requalificado correctamente os crimes: tratou-se sem dúvida de uma violação, ao abrigo da lei espanhola e da Convenção de Istambul. E o telemóvel da vitima não foi furtado, mas sim roubado, porque existiu intimidação e violência. Violação é dos crimes mais violentos de qualquer lei penal, não é sexo, mas sim uma das formas mais cruéis de ofensa à integridade física. Ao dizer que se trata de roubo e não de furto, o tribunal superior está a confirmar que se trata de violação e não de abuso; que esta vítima foi profunda e gravemente violentada, muito embora não tenha sido esmurrada; que não é necessária a resistência da vítima para se preencher o tipo legal do crime de violação. O segundo crime pode parecer secundário mas foi o que provou e assegurou a punição do primeiro crime, acarretando todo este significado.

Por isso também o autor do crime de roubo foi mais severamente punido que os restantes violadores. AMG (não merece ser mencionado por nome), é a nossa segunda menção desonrosa. Foi ele quem roubou o telemóvel, e foi ele quem proferiu a frase mais ignóbil ouvida durante o julgamento: “ela disfrutou mais que eu”. Este militar – que acabou de ser expulso da Guardia Civil (era necessária sentença transitada em julgado) – recebeu a pena mais dura: 17 anos. Mais 2 anos pelo crime de roubo.

Estes 5 violadores vão passar longos anos na prisão. Mas há muitos mais à solta. Para esses, tenhamos esperança no efeito dissuasor desta punição exemplar. E para os milhões de vítimas em silêncio, tenhamos esperança no exemplo de coragem que esta mulher tão jovem deu a todas as mulheres. Que força sobre-humana denunciar num caso desta dimensão mediática aos 18 anos! Lembremo-nos que estes violadores em concreto tinham vídeos a abusar de outra jovem que não foi logo identificada pois não veio de imediato a público – o que é a reação mais natural e humana: quem quer ficar sob os holofotes com a chancela eterna de ter sido vítima de violação? Mas inspirada pela outra vítima, ela finalmente apresentou queixa. No final do ano será o julgamento, pelo que 4 dos 5 violadores ainda poderão ver as suas penas aumentadas.

Sentenças como esta são exaltadas e celebradas precisamente por serem uma raridade. Mas celebremos porque esta vitória é das nossas irmãs espanholas. Foram os seus rugidos que o Tribunal Supremo escutou e repetiu quando proferiu esta sentença. Não tenhamos dúvidas que a pressão das feministas foi primordial neste caso. A organização exemplar e super-sónica dos protestos, os inúmeros artigos, a inundação das redes sociais com apelos de justiça e de apoio à vítima foram determinantes para chegarmos aqui. Revigoradas por esta vitória temos de seguir em frente, pois provámos que unidas, e acreditando nas nossas irmãs, a manada somos nós.

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