Ligou-me. Numa espécie de pânico escondido, confirmou se falava com a pessoa certa. Era eu.
“Chamo-me Carla… não se assuste, mas é por causa da sua filha”, (era agora eu quem não escondia o susto. “Encontrei na rua a caderneta da menina e com ela dois livros .. estão em mau estado… estavam debaixo de um carro… corri a ligar-lhe porque… porque… a menina está consigo?”.
Percebi-lhe a angústia e o meu cérebro conseguiu processar em segundos tudo o que lhe passara pela cabeça.
“A menina está bem Carla, respire”. Apressei-me a dizer. “O que aconteceu é que lhe roubaram a mochila, com os livros, a caderneta, o passe e o resto do material… tiraram a mochila da entrada do prédio “.
Carla foi deixando cair a forma ofegante de respirar e, à medida que se sentia aliviada, foi contando: “vim buscar os meus dois pequeninos à escola… a caderneta chamou-me a atenção e liguei logo porque me passou tudo pela cabeça… e se levaram a menina e deixaram aqui as coisinhas… e se a mãe ainda não sabe… é que eu também tenho dois… e desculpe… desculpe se a assustei…”
Carla não me assustou… surpreendeu-me.
“Carla peça -me tudo menos desculpa, estou muito grata por me ter ligado, por ter guardado as coisas da menina… por todo esse cuidado!
Combinamos a recolha dos achados à porta de casa de Carla, bem perto da nossa, aliás. Carla tinha voltado mais uma vez ao local da primeira descoberta, na tentativa de encontrar mais do material perdido, o que conseguiu com sucesso relativo… mas é irrelevante para o caso.
Relevante é Carla!
As Carlas, que mantêm a humanidade sem reservas ou falta de tempo. As Carlas que não viram a cara, que não cedem à indiferença. A Carla, jovem humilde, de habitação pequena e modesta, com duas meninas a cargo, perdeu tempo a pensar na minha e em mim.
Deu às filhas o melhor exemplo de como se muda o mundo. É assim, no dia a dia, nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, palavras e atenção, na ação em vez da indiferença… é assim que o vamos mudar!
Nunca vou agradecer o suficiente a Carla. Não pelo que recuperou da mochila da minha filha.
Mas pelo bocadinho de humanidade e esperança que me fez recuperar a mim.