Há uns anos estava a ver um documentário sobre a China, num dos seminários do mestrado (precisamente de Estudos Orientais – China) e um dos repórteres perguntava a muitos chineses que passavam pela praça Tian’anmen se sabiam o que lá se passara a 4 de junho de 1989. As respostas eram sempre negativas. Ou porque não sabiam de facto ou porque era mais seguro fingir ignorância. Só uma rapariga (ou jovem mulher, que é difícil descortinar a idade das orientais), em dezenas de questionados, respondeu ‘Sei. Os estudantes.’ E não disse mais.
Tian’anmen é ‘o’ tabu da China atual. Os meios de comunicação, estatais ou privados, banem qualquer referência. Os académicos estão proibidos de se acercar do tema – de resto com Xi Jinping os académicos têm cada vez menor esfera de investigação e são generosamente ‘convidados’ a fazerem auto censura. Livros que aludam ao funesto quatro de junho não são publicados. A polícia da internet – bom, com Xi Jinping é o big brother da internet – apaga qualquer referência, cada vez mais simbólica (usando por exemplo caracteres homófonos de 4 e 6, o dia e mês do crackdown de Tian’anmen), ao assunto. (Ainda que seja sintomática a necessidade de continuarem a policiar as discussões sobre Tian’anmen.)
As únicas pessoas a quem é permitido falar com relativa liberalidade da mortandade de Tian’anmen (que, claro, já incluiu ameaças e a prisão de uma delas e do seu marido aquando da Conferência de Beijing em 1995) são as mães dos estudantes que morreram a 4 de junho. Sob a liderança de Zhang Xianling (a mãe de Wang Man, um dos líderes cimeiros dos estudantes em protesto) e de Ding Zilin, as Mães de Tian’anmen funcionam como grupo de apoio às famílias dos estudantes mortos, fazem de detetives na procura de confirmar as identidades dos estudantes que morreram – mesmo debaixo do silêncio imposto já confirmaram mais de duzentas mortes – e não deixam que se esqueça a atrocidade. As autoridades estendem-lhes moderada tolerância porque estas mães já sofreram de mais e os chineses têm respeito pela devastação de uma mãe que perde um filho. E, também, porque não têm muitos meios, logo o alcance da sua mensagem é curto. Em todo o caso, elas aproveitam toda a liberdade que lhes é concedida até ao limite. Toda a gente sabe que uma mãe que perdeu um filho não tem mais nada a perder. Nem a temer.
Voltando atrás. Não é um silêncio de molde a sobressaltar um cardíaco. Afinal não é costume os regimes exibirem orgulhosamente os momentos em que dispararam contra civis desarmados e esmagaram (literalmente) jovens não hostis num protesto pacífico com tanques militares.

Já dei no Observador uma ideia dos protestos e do crackdown pelas autoridades na madrugada de 4 de junho. Recomendo também que vejam as duas partes do documentário The Gate of Heavenly Peace. Não vale a pena repetir aqui. Falemos antes de outras particularidades da China que nasceu de Tian’anmen.
Tabu ou não, o crackdown de 4 de junho de 1989 é uma ferida aberta. E junto-o à Revolução Cultural (entre 1966 e 1976), para os dar como par fundador daquilo que é moralmente arrepiante na sociedade chinesa do século XXI.
É certo que as gerações mais novas – mesmo as que conhecem o que se passou – não têm grande necessidade de pedir explicações ao PCC pela brutalidade contra inocentes. Foi interiorizado pelos chineses (aparentemente sem esforço excessivo) que é melhor aproveitarem as bonomias das suas vidas, com a prosperidade económica e o acesso crescente a bens de consumo, que deterem-se em queixumes por ‘incidentes’ que ocorreram há trinta anos. Sobretudo concentrarem-se nas suas vidas e deixarem a política para quem sabe melhor: o Partido Comunista Chinês.
E no entanto. Esta praxis e este ethos exigidos e impostos pelo partido reinante depois de Tian’anmen promovem uma moral egoísta e materialista – que tem consequências muito práticas na vida quotidiana. Os chineses são ensinados a dedicarem-se somente ao bem estar económico próprio. As preocupações com os demais, com a comunidade, com o outro, com o próximo – bom, essas ficam a cargo do PCC; os meros mortais que não pensem em fazer concorrência. Ações de beneficiência são afrontas às autoridades, porque significa que existem problemas que estas não querem ou não conseguem resolver. Qualquer tipo de ativismo (mesmo que não tenha conotações políticas, como é o caso das feministas chinesas manifestando-se contra o assédio nos transportes públicos, contra a violência doméstica ou pela necessidade de mais casas de banho públicas para mulheres) é perseguido e terminado se necessário com violência, porque o governo teme que descarrilem em contestações políticas. As religiões, com a sua ligação ao transcendente e ao desapego terreno são também hostis – a lealdade maior de cada chinês deve ser ao PCC e, por outro lado, religiões estrangeiras introduzem elementos ocidentais nas mentes dos chineses que os patrióticos e nacionalistas governantes reprovam.
Como é bom de ver, aos chineses o altruismo está vedado, (exceto no restrito círculo de relações pessoais) e resta-lhes ocuparem-se de si próprios e de enriquecerem. Este incentivo é tanto mais demolidor quanto escassos treze anos antes de Tian’anmen vivia-se a Revolução Cultural, outro momento de evaporação dos valores morais – quer individuais e quer da sociedade. Promovia-se a delação, a violência sobre inocentes, a participação em humilhações públicas de terceiros, a quebra de ligações familiares se acaso um parente se revelasse politicamente nefasto.
Chamo ao palco Rae Yang, uma das minhas autoras para a dissertação de mestrado, e o seu livro Spider Eaters. Há um parágrafo que ilustra bem a deterioração moral da China nos dez anos da Revolução Cultural e como aquele ambiente político ensinou as pessoas a mentirem. Quando conta como participou, no primeiro ano da Revolução Cultural, 1966, como Guarda Vermelho numa sessão de violência (sobre desgraçados inocentes) enquanto viajava num comboio, em que vários passageiros que se declaravam provenientes das classes sociais negras (e perseguidas) foram agredidos, reflete o que está na imagem:

O resultado dos eventos dos últimos cinquenta anos na China é uma sociedade com pronunciados laivos distópicos. O capitalismo sem ética e a desresponsabilização total pelo bem-estar do próximo têm na China o máximo expoente. Coloco aqui uns parágrafos do texto que escrevi para a Ler do Verão de 2018, sobre o meu autor favorito Yu Hua, à volta do silêncio oficialmente decretado e das sombras da China contemporânea. E da possibilidade de redenção-barra-sobrevivência que Yu Hua nos aponta.
‘Escrevi que todos os traumas da história da China constam dos romances de Yu Hua? Engano. Tian’anmen não aparece em nenhum – diretamente. Aparecendo, o livro seria proibido. Em China em Dez Palavras, sim, Yu Hua refere o massacre ao longo dos vários ensaios e as consequências para a vontade coletiva dos chineses. Por isso, este livro só foi publicado em Hong Kong e Taiwan mas está banido da China. (Apesar de ser pirateado em abundância, de resto para diversão do escritor.)
Junho de 1989, na praça Tian’anmen. Yu Hua assume que o massacre mudou tudo. As paixões políticas que se haviam acumulado desde a Revolução Cultural esboroaram-se perante a reação violenta do Partido Comunista Chinês. Foram substituídas pela paixão de ficar rico, unindo o país na vontade urgente de ganhar dinheiro. Argumenta que o modelo de desenvolvimento capitalista chinês está ‘saturado com uma violência revolucionária semelhante à da Revolução Cultural’. Exemplifica com os despejos forçados para permitir novos projetos imobiliários. Por vezes os residentes vão trabalhar para, horas mais tarde, regressarem a casa e verificarem que foi demolida com todos os bens (e memórias) lá dentro. Ou com a corrupção e a intimidação violenta que se tornou normal nos negócios.
Se Tian’anmen não se vislumbra nos romances, a sociedade e a economia que surgiu em consequência da supressão dos estudantes é abundantemente explorada nas últimas obras de Yu Hua. Brothers, a anos-luz da escrita poética do primeiro romance, numa linguagem crua e quase grosseira, ilustra uma China onde nada está além dos limites para ganhar dinheiro – nem sequer um homem por implantes mamários para vender um produto fraudulento a incautos. A China onde um homem usa como marcas de sucesso a ostentação de dinheiro e a exibição mais escancarada possível da sua vida sexual – comprada cara, para enaltecer a aura do sucesso e da riqueza.
The Seventh Day, apesar do humor mais apurado e do tom da escrita menos agressivo, descreve, a páginas tantas, um rio com cadáveres de bebés abortados – o refugo da política de filho único da China. Uma das personagens é uma mulher que morre atropelada várias vezes seguidas, reedição de um caso real que correu mundo. Uma menina de dois anos foi atropelada numa rua de uma cidade chinesa e ficou na rua várias horas sem que nenhum dos passantes parasse para ver o que lhe acontecera.
É uma realidade feia, quase distópica. Como no site China File escreviam, o ‘abismo moral’ da China contemporânea. Há ressonâncias desta total ausência de valores e limites morais, bem como das desigualdades gritantes que o capitalismo de estado produziu, no filme Um Toque de Pecado de Jia Zhangke. Ou no romance negro que foi sucesso internacional, A Perfect Crime de A Yi.
Porém as histórias de Yu Hua não são locais de vazio, sofrimento e desesperança contadas com humor improvável. Tanto a maldade da história chinesa dos tempos maoistas como a fealdade da China capitalista são contrariadas pela bondade – e o amor, nos livros de Yu Hua, é mais uma forma de bondade – com que algumas personagens presenteiam outras. É a bondade que as personagens encontram noutras, no meio dos vendavais comunistas ou da impiedade do boom económico, que lhes permite a redenção possível.
Em Cries in the Drizzle é o amor inquebrantável da mãe adotiva, com quem viveu apenas cinco anos, de resto a única experiência de amor na infância, que salva Sun Guanglin – quer da perseguição pela direção da escola durante a Revolução Cultural quer do azedume perpétuo. Crónicas de Um Vendedor de Sangue é mais uma história de bondade/amor, desta vez de Xu Sanguan pela sua mulher e pelos filhos, incluindo o que biologicamente tem outro pai.
O amor/bondade em Yu Hua não nos é revelado com descrições piegas de sentimentos. O amor/bondade é prático, concretizado nos atos – que são contados, como quase sempre, com humor. Acima de tudo, o amor/bondade é provado quando as personagens desafiam as ordens da História para apoiarem aqueles que amam. Jiazhen, em To Live, corrompe o oficial do partido da sua aldeia para manter a propriedade de um saco de arroz para alimentar a família durante o Grande Salto em Frente. Xu Sanguan leva todos os dias uma boa refeição escondida à sua mulher enquanto ela é exibida e humilhada na via pública nos inícios da Revolução Cultural por ser um ‘sapato velho’.
Os atos de amor, bondade e lealdade, de dimensão variável, parecem ser, nas obras de Yu Hua, a forma subversiva de os chineses sobreviverem à hostilidade e perversidade do maoismo e do capitalismo. Há estratégias de sobrevivência piores.’