Soube da morte da Sabrina no primeiro dia no Myanmar. Não acreditei quando me contaram. Já a “tinham matado” umas quantas vezes, essas fake news, desmentidas pela própria de tempos em tempos nas redes sociais. Incrédula, liguei para a amiga que nos tinha apresentado que confirmou a notícia. – Sim, é verdade. Infelizmente, é verdade. O coração acelerado, a mente em negação absoluta, a alma pesarosa – Não pode ser, Sabrina não pode morrer. Logo, assim. Mas foi mesmo assim. Sabrina Bittencourt matou-se. A mulher que denunciou os abusos do médium João de Deus (João Capeta, na linguagem da própria, e de todos, depois de lhe cair a máscara), personagem mediática que chegou a ser visitada pela Oprah, suicidou-se. Na verdade, mataram-na, e para enorme tristeza de muito mundo, desta vez não era fake news.
Conheci-a através da Marta Gonzaga, a co-organizadora do Lemonade Festival, durante a 1ª edição deste festival de empreendedorismo para crianças, pais, educadores, professores e todas as pessoas que se interessam por educação. A minha filha, Beatriz, e o filho da Sabrina, o Gabriel (Biel), integraram um painel, a Bia, então com 17 anos, falava do seu novo livro “Becoming Whole” e o Biel, na altura com 15, contava a uma plateia impávida a sua já vasta experiência de empreendedor social. Minichef de alimentação saudável, Biel começara a criar encontros para outras crianças sobre consciência alimentar, pasme-se, com oito anos. A Sabrina e eu fazíamos parte da plateia, ela já com uns bigodes e umas orelhas de gato, do cantinho da maquilhagem artística e do face painting. E foi assim que se apresentou no painel da tarde, no qual apresentou a sua “Escola com Asas”, uma rede de aprendizagem livre que estimula crianças, jovens e adultos por meio do empreendedorismo social. Foi o próprio Biel o motor desta criação quando aos oito anos pediu para sair da escola já que o ensino tradicional o desviava dos seus sonhos de vida.
Guerreiro como sua “mainha”, Biel continua a trabalhar em prol de mais mulheres em situação de vulnerabilidade e a limpar o nome da sua Mãe que tantas pessoas de má rês tentam difamar. Este texto peca por não referir nem um quinquagésimo das causas e movimentos criados ou apoiados pela Sabrina. É no momento a mais sentida homenagem que lhe posso fazer.
Aquela expressão de autoria desconhecida (é incorrectamente atribuída a Pessoa): “o valor da coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis” é tão bem talhada para a Sabrina. Magnética e imensamente solar, Sabrina personificava esta frase. Mas quem era Sabrina Bittencourt e porque o seu fim de vida foi tão trágico? Ao invés de falar deste ponto irreversível, prefiro falar na sua Vida e nos seus feitos que mudaram a vida de tantas pessoas, mulheres, crianças, de tantas vítimas de abusos e maus-tratos.
Portugal merece saber quem foi e como viveu Sabrina Bittencourt, ou Sabrina de Campos, uma Mulher com M bem máscula (digo máscula com uma ponta de ironia no sorriso), ativista e empreendedora social, Mãe do Biel, da Raquel, do David, anarquista do bem, feminista, apartidária, nómada por vocação, brasileira com ascendência “multinacional e multicultural”, Mulher livre, artista, performer, contadora de histórias, palestrante, sobrevivente de linfoma no-Hodgkin, de uma meninice e alegria ímpares. Entre dezenas de projetos sociais que esteve envolvida, Sabrina era uma defensora do território, herança cultural e património índio/indígena no Brasil, Quénia e México, só para citar alguns países, trabalhou com crianças e jovens com deficiência e com problemas renais, envolveu-se na procura de crianças desaparecidas no Brasil, tornou-se inspiração para milhares de jovens talentosos que, antes de a conhecer, aspiravam ínfimas migalhas. Foi-se tornando para o poder imposto persona non grata, uma ameaça ao sistema. Porque Sabrina não tinha medo e nunca se vergou.
De família mórmon e abusada na infância por pessoas que frequentavam a igreja da sua família, Sabrina tornou-se uma das principais vozes, uma força, de apoio a vítimas de violência sexual, nomeadamente de grupos religiosos. Esteve por trás da coragem de centenas de mulheres que denunciaram o médium João de Deus, o guru Prem Baba e outros 13 auto intitulados “líderes espirituais”. De persona non grata tornou-se alvo a abater. Alvo de ameaças de morte, ela vivia fora do Brasil (quando a conheci, antes das “grandes denúncias”, vivia já pela Europa), mudava frequentemente de casa. Se inicialmente por vocação, nos últimos anos por sobrevivência já que parava num sítio por poucos dias. Tinha uma rede de amigos leais, movimentos com os quais trabalhava ou dos quais era cofundadora, como Vítimas Unidas ou COAME (Combate ao Abuso no Meio Espiritual) do seu lado, pessoas de organismos internacionais que a assistiam e à sua família nas movimentações constantes.
Importa sublinhar que Sabrina era uma idealista, e admirada enquanto tal pelas equipas com quem trabalhava: os movimentos aos quais se conectava pautavam-se, ou aspiravam no futuro próximo, a serem livres de hierarquias, inteiramente formados por voluntários, sem afiliações de nenhum tipo. A sua grande bandeira era o amor e, por isso, Sabrina era imparável.
Divulgou um conjunto de acusações de abuso sexual praticados pelo médium João Teixeira de Faria, 76, mais conhecido como João de Deus (Capeta), em Abadiânia, Goiás, que a Oprah já havia visitado e assistido às suas “cirurgias espirituais”. Sabrina e a sua equipa fizeram pressão – e conseguiram – que a equipa da Oprah tirasse o vídeo do seu canal e que a própria apresentadora pedisse que justiça fosse feita para aquelas mulheres. Em simultâneo, Sabrina denunciava outros casos, organizava depoimentos, articulava com a imprensa do bem, e estava disponível para o acolhimento/encaminhamento, em tempo integral, das vítimas 24 horas por dia. Não esqueço do seu desabafo ululante de quando uma mulher não aguentou a pressão e se suicidou. Sabrina ficou de rastos. Nas mulheres auxiliadas pela activista, inclui-se a própria filha do João Capeta, Dalva. O Ministério Público decretou prisão no dia 16 de dezembro e duas semanas depois, Sabrina voltou à carga, denunciando o também envolvimento do Capeta em casos de tráfico internacional de bebés. É paradoxal que uma das acusações da defesa do Capeta seja o interesse de Sabrina nos 50 milhões de reais bloqueados pela justiça brasileira para ressarcir as vítimas. Uma das fake news mais divulgadas, sem cabimento algum, era que Sabrina havia “fabricado” centenas de vítimas. A verdade: ela não queria nada a ver com esse dinheiro, nem sequer gerir. Sabrina apenas desejava que fosse feita justiça para as vítimas de um sistema podre.
“Ela deu o último passo pra gente poder viver. Eles mataram minha mãe”, escreveu Biel no seu Facebook no dia seguinte. Aí a resposta para o porquê. Deu a vida pelos filhos que estavam sendo ameaçados incessantemente. Por isso, seu suicídio é, sim, um assassínio. Os responsáveis são quem ameaçava matá-la, quem colocou “matadores profissionais” no seu encalço. Estava a poucas horas de visitar o Shwedagon, o maior templo do Myanmar, quando soube. Aquele onde a líder Aung San Suu Kyi fez o discurso inflamado pela democracia, pela defesa dos mais fracos, desafiando o poder estabelecido antes da sua prisão domiciliária. Acendi uma vela, homenageei-a com flores, chorei baixinho até que ouvi uma voz firme no meu coração: “Não chorem por mim, pratiquem o bem, continuem o meu legado”. E serenei.
O post de facebook da Sabrina, a anteceder a sua decisão, iniciou evocando Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro, assassinada cerca de um ano antes nas ruas da cidade, e sua grande amiga. Pelo meio resumia o que tinha sido a sua opção de Vida: “preferi SEMPRE ficar do lado mais frágil nesta breve existência: mulheres, crianças, idosos, jovens, povos originários, afrodescendentes, refugiados, ciganos, imigrantes, migrantes, pessoas com deficiência, gays, pobres, lascados, fodidos, rebeldes e incompreendidos…”
Sabrina sabia que a sua rede, o pai dos seus filhos mais novos, os seus companheiros e companheiras de vida e de tantas batalhas cuidariam do seu bem mais precioso. Não imagino sequer a dureza e a leviandade da circunstância que implica tomar a decisão mais definitiva. Confio no seu discernimento e na nobreza do seu coração.
Segue também um poema partilhado pela plataforma COAME, “quando começou a saga contra líderes espirituais abusadores”, da autoria de Sabrina Bittencourt:
“Nossos segredos são os mesmos.
Desde o princípio.
Desde que o mundo é mundo.
Não se iluda.
Somos feitas da mesma matéria e das mesmas dores.
Nenhum deles está aqui para nos salvar.
Só você pode se salvar.
Acredite.
Em você.
Não dobre seus joelhos, não beije seus pés.
São tão impuros quanto os teus e os meus.
Que a semente de amor que você tem dentro, floresça através dos tempos.
Até o final.
Não… não existe final.
É outra ilusão.
Não existe separação.
Eu te sinto em mim.
Nossos segredos são os mesmos.
Os teus ainda estão guardados?
Por que você os protege?
Deixe-os voar.
Deixe o vento levar.
A tempestade lavar.
Não tenha medo.
Eles são covardes.
Não vão entrar mais no seu quarto, pequena.
O seu silêncio os fortalece.
O seu segredo os fortalece.
Se todas contássemos nossos segredos… o seu poder acabaria.
Todas juntas!”
Por Sabrina Bittencourt
#Sabrinasempre #SomosImparáveis
