“Men explain things to me” (os homens explicam-me coisas), escreveu Rebecca Solnit, onde conta o episódio revelador e caricato de ter sido presenteada com uma explicação sobre um livro do qual era autora. Solnit, (a quem é com frequência, erradamente, atribuído o termo mansplaining), retrata a experiência tão comum às mulheres de sermos, em ocasiões e contextos tao diversos, condescendentemente ensinadas por interlocutores masculinos sobre assuntos que dominamos. Os homens explicam-nos coisas, afinal. Por que não haveriam de explicar-nos como ser feministas?
Homens que demonizam feministas estão, à partida, denunciados, transparentes na sua misoginia. E há, não tenho dúvidas, muitos aliados que estão efetivamente connosco, e cada vez mais exemplos felizes de homens que desafiam a masculinidade que lhes foi imposta – não é deles que falo aqui. Mas há também, ao mesmo tempo, homens camuflados de aliados, dentro dos mesmos círculos, defensores da mesma causa, vocais e ostensivos no seu apoio. Homens à partida insuspeitos, nossos pares, que circulam nos mesmos meios e de quem estou politicamente próxima. Homens que do alto da masculinidade que os protegeu sempre da violência endémica a que nenhuma mulher escapa, em menor ou maior grau, e que vêm sem pudor disciplinar-nos o discurso – ora condescendentes no tom, ora assertivos nos rótulos com que nos sinalizam como más feministas: nós, “putofóbicas”, se nos posicionamos contra o sistema prostitucional; nós, “bioessencialistas”, se ousamos nomear o sexo como raiz da opressão das mulheres. (ou, dito de outra forma, se ousamos nomear o sexo como raiz do sexismo). Homens em permanente exercício de mansplaining sobre o que é o feminismo – ou, a limite, sobre que é ser mulher. Homens que, em tempos de retrocesso tão grotesco como o de Alabama, têm a altivez de nos ensinar o que é, afinal, uma mulher. Homens ditos feministas, de aparência progressista, que repetem à exaustão fórmulas intelectualizadas como “o corpo é uma construção social” e “o sexo é tão construído como o género”.
Homens que não sabem o que é ser tocada por um desconhecido, pela primeira vez, com onze anos num autocarro; ouvir o primeiro piropo quando ainda somos pré-adolescentes – e ouvir tantos, nos anos que se seguem, que normalizamos o assédio como ruído. Que não sabem como é ser adolescente num ambiente hostil em que diariamente nos comentam as mamas; em que somos rotuladas de putas ou púdicas quando ainda mal demos o primeiro beijo. Que não sabem como é perceber que a menstruação é considerada suja, grotesca ou anedótica quando ainda nem a tivemos. Que não cresceram a perceber cedo que a rua não é nossa, que o nosso corpo é lido como um convite ao comentário brejeiro ou hostil, e em que tudo nos ensina o nosso lugar. Que não sabem como é crescer, apenas por ser mulher, numa geografia do medo: todos os dias evitar caminhos, automatizar respostas e comportamentos (lembro-me de, durante anos, ligar ao meu pai todas as noites depois de sair do metro, simulando uma chamada com alguém próximo). E perceber mais tarde que o medo e os mecanismos de segurança que sempre tivemos na rua não evitam, afinal, que nos brutalizem na cama, na intimidade com alguém que amamos.
Não sei, não posso e não pretendo falar por todas as mulheres – nenhuma de nós poderia. Mas sei e posso falar enquanto mulher; falar da minha experiência de ser pessoa sendo sempre mulher – e por isso mesmo, da minha experiência enquanto alvo de sexismo. Não sei, por exemplo, o que é ser uma mulher negra num país estruturalmente racista como o nosso; sei que a cor da minha pele sempre me protegeu de formas sistémicas de preconceito, abuso e discriminação. Não sei o que é ser alvo de racismo: posso – devo – ouvir e aprender sobre o meu próprio privilégio, perceber como beneficio dele todos os dias. Posso – devo – desconstruir o racismo em que fui socializada e que certamente não erradiquei, e reagir quando o vejo explícito ou encapotado. Mas seria obviamente inaceitável que alguém nesta posição de privilégio se imiscuísse na luta antirracista de forma a falar mais alto do que os sujeitos de experiência, e que pretendesse corrigir ou disciplinar a forma como se organizam e manifestam. Que isto seja evidente quando falamos de racismo, mas totalmente opaco quando falamos de feminismo, é incompreensível.
Não sei como chegámos aqui – suspeito que a crescente obnubilação do termo “direitos das mulheres” pela mais politicamente palatável “igualdade de género”, e a repetição de expressões aparentemente inclusivas como “o feminismo é para toda a gente”, fizeram parte do caminho. Afinal, falar em igualdade de género permite que todos/as tenhamos uma palavra a dizer nessa visão igualitária, que arreda as mulheres do centro do seu próprio movimento.
Posso, novamente, falar apenas por mim: todos os aliados são bem-vindos. A luta será ganha mais depressa se unirmos esforços. Comecem por vocês: desconstruam o vosso próprio privilégio, desmontem a vossa própria masculinidade (e isso implica, por vezes, que fiquem em silêncio). Usem o vosso espaço e militância para sensibilizar outros homens. Intervenham, denunciem a violência contra as mulheres. Não sejam cúmplices. Utilizem o vosso capital mediático, a vossa plataforma e visibilidade, quando existem, para se posicionarem contra a toxicidade da masculinidade que vos é imposta e que também vos agride. Mas, por favor, não usem o vosso privilégio para falar ainda mais alto sobre nós, os nossos próprios corpos e direitos, para nos policiar o discurso e ditar como devemos organizar-nos. O feminismo não pode ser apropriado como mais uma forma de privilégio masculino. Se usam o vosso espaço, poder e privilégio para nos ditar como ser feministas, podem até estar bem-intencionados, mas fazem parte do problema. Machismo maquilhado de progresso é, afinal, ainda machismo.